"Tenho,
portanto, o prazer de solicitar aqui a meus descendentes que não acreditem
jamais naquilo que lhes disserem como tendo partido de mim, sem que eu mesmo
tenha divulgado"
René Descartes
Paulo JB Leal
paulo@pauloleal.com.br
1.
O
entendimento como característica do ser vivo
A aptidão
natural de entender o meio em que vivem constitui o elemento distintivo entre
seres e coisas, pois de que outra forma seria possível aos vegetais entenderem
a existência da luz para o fototropismo, a ameba do alimento para a fagocitose
e os animais do mundo natural para agirem de acordo com as necessidades inatas
ao estágio de desenvolvimento biológico, senão uma aptidão natural denominada
entendimento?
Se
observarmos atentamente os seres vivos, facilmente perceberemos a existência de
uma característica distintiva dos seres como sendo a capacidade natural de
processar impressões, que embora não sendo possível precisar o momento em que é
adquirida, fundamenta a vida e decorre de aptidão própria de agirem segundo
entendimento natural.
2.
Conhecer
e ignorar
Não é
possível delimitar o âmbito da teoria do conhecimento sem antes explicitar de
forma clara suas fontes, ou seja, os meios pelos quais podemos afirmar que nos
referimos a uma coisa e não à outra, bem como quando não nos referimos à coisa
alguma.
Aparentemente,
isso parece simples, mas não obstante o vertiginoso avanço no mundo da ciência,
ainda hoje, o mais despreparado dos céticos consegue fulminar, com poucos
argumentos, qualquer tentativa de expor uma teoria nesse sentido, o que nos
convence ser mais fácil explicitar o que ignoramos daquilo que conhecemos, pois
como poderíamos discorrer sobre coisas quando sabemos que as impressões
recebidas pelos sentidos são sempre parciais e que, embora muitas vezes
imperceptíveis, vêm desatualizadas pelo tempo, não significando a realidade
objetiva representada pela “ideia” ou pelo discurso?!
3.
Os
instrumentos do juízo
Esse
problema que sempre atormentou a filosofia é facilmente resolvido quando se
consegue expor, de maneira clara, os meios utilizados pelo juízo, ou seja, de
que forma as impressões do mundo são recebidas e como são tratadas entre os
seres vivos.
Não resta
dúvida alguma que a sensibilidade é o meio pelo qual os seres se relacionam com
a natureza, sendo ela a responsável pela introdução de dados e informações
necessárias à atividade biológica, sem a qual não haveria vida, pois lhes
faltaria o instrumento para entendimento do ambiente natural, muitas vezes
hostil à existência do ser.
Todavia, a
sensibilidade não fornece juízo algum. Apenas impressões fenomênicas que são
entendidas por mecanismos naturais e necessários ao cumprimento dos desígnios
biológicos decorrentes do grau evolutivo de cada espécie.
4.
As
impressões dos sentidos e os “juízos” analíticos
Os sentidos
não fornecem juízos, mas impressões, tendo restado fracassadas todas as
tentativas de elaboração de uma ciência fundada neles. E não poderia ser
diferente, pois os sentidos fornecem apenas impressões parciais dos objetos, que
nem de longe podem ser confundidas com eles, visto se tratar de coisas
completamente diferentes.
A falta de
clareza a respeito dessa questão fundamental da filosofia acabou induzindo os
pensadores a buscar, no transcendente, as respostas para o que, nesse local,
jamais poderiam ser encontradas. Ora, no transcendente não há nada além daquilo
que foi introduzido pela síntese.
Quaisquer
coisas que venham a ser encontradas no transcendente pela análise serão falsas
impressões, decorrentes de um longo hábito da filosofia de reduzir o mundo a um
sistema construído unicamente a partir de modelos extraídos das manifestações
sensíveis da natureza.
5.
Os
juízos sintéticos
Por estarmos
acostumados a pensar tomando impressão por juízo e estabelecendo relações,
inclusive em locais onde elas não existem[1], não há
tarefa mais difícil do que expor, de forma clara, o ambiente em que estão
situados os juízos sintéticos.
E isso não é
obra do acaso. É que o homem somente conseguiu evoluir na construção daquilo
que hoje chamamos de ciência na medida em que passou a fazer uso de fenômenos
naturais como modelos constitutivos de sua inteligência[2].
Foram os
fenômenos naturais os primeiros a fornecer dados que permitiram estabelecer
relações espaciais e temporais entre tudo o que a capacidade analítica
fornecia.
Com o passar
do tempo e com o refinamento das investigações a respeito das coisas,
percebendo que sua capacidade analítica era limitada, o homem começou a fazer
uso de invenções para ir adiante. Agora não mais diretamente, mas com a
interposição de instrumentos que o colocaram diante de fenômenos tão
extraordinários que jamais conseguirá explicá-los[3],
fundamentando-os na análise.
A capacidade
sintética[4] é
característica distintiva dos seres humanos e, por situar-se em no ambiente
metafísico, é constitutiva de toda e qualquer ciência.
A impressão
analítica tem origem fenomenológica e o juízo sintético, produção metafísica, e
não podem ser confundidos um com o outro sob pena do estabelecimento de uma
confusão tal que tornará impossível estruturar um conhecimento minimamente
organizado.
A falta de
clareza com relação a isso impediu que a filosofia pudesse responder
adequadamente às razões do avanço das ciências naturais, mesmo diante das
objeções categóricas dos céticos.
6.
Correspondência
entre juízo e objeto
Embora
situados em planos completamente distintos, a toda impressão analítica há um
correspondente juízo, mas todo e qualquer juízo é sempre metafísico e, como
tal, sintético, não sendo possível, sem grave equívoco, falar-se em juízo
analítico, por confundir consequência com causa. A matéria da analítica é
apenas impressão fenomênica cuja finalidade é fornecer matéria ao juízo
sintético, mas que com ele não se confunde.
A
característica distintiva dos seres vivos é a capacidade analítica, sem a qual
não haveria vida. Todo o ser vivo tem capacidade analítica e consequentemente
de entender o meio e de relacionar-se com ele em cumprimento de suas
necessidades vitais.
Mas isso não
autoriza a ninguém concluir que a capacidade analítica possa fornecer juízos,
uma vez que estes, pela natureza metafísica, encontram-se em ambiente
completamente distinto do fenomenológico, produtor de impressões sensíveis.
Nem todo o
juízo é derivado de impressão sensível. A matemática e parte da geometria são provas
da existência de um ambiente puramente sintético em que os juízos não estão
referidos a nenhuma impressão, apenas a outro juízo.
7.
O ambiente
fenomenológico
Uma teoria
do conhecimento que se preze não pode deixar de explicitar claramente suas
bases e a primeira delas é delimitar, com precisão, o ambiente fenomenológico
do metafísico.
Os fenômenos
são manifestações analiticamente perceptíveis pelos seres vivos. A percepção
analítica pode derivar de relações diretas entre os seres e as coisas ou pode
ser deduzida, indiretamente, com o auxilio de equipamentos.
A eletrônica
é a prova de que não obstante a inexistência de capacidade para a percepção de
elétrons, o ser humano descobriu a sua existência e construiu instrumentos que
lhe permitiram manipulá-los pela ação, transformando-os em manifestações
sensíveis.
No entanto,
a falta de capacidade analítica direta do fenômeno não afasta a sua existência
e provavelmente ainda estão para serem descobertas tantas manifestações
fenomênicas no Universo que somente especular sobre isso seria uma tarefa
infindável.
A ciência da
natureza avança na mesma medida em que o homem consegue, com sua Inteligência e
ação, desenvolver equipamentos que ampliam sua capacidade analítica, o que lhe
permite hoje frequentar ambientes jamais sonhados pelos gênios da antiguidade.
Com certeza,
a inteligência humana ainda engatinha nessas descobertas e não será nenhum
exagero afirmar a possibilidade da existência de outras capacidades entre os
seres além daquelas conhecidas, bastando examinar determinados animais que se
deslocam com tanta precisão em ambientes tão deficientes de referências que
somente alguma aptidão analítica ainda não conhecida pelos humanos, poderia
explicar esse comportamento.
8.
O ambiente
metafísico
O ambiente
metafísico é o ambiente da síntese. Nele, não existe nada que possa ser
considerado verdadeiro ou falso, mas apenas ambiente em desordem ou em ordem. É
o ambiente que tenta representar, através de referências às manifestações
fenomênicas, os dados do “mundo” do entendimento.
A analítica
responde pelos dados e a síntese pelas referências. Um se encontra no plano do
fenômeno e outro no da metafísica. Não é possível pensar o mundo sem
referências, embora se possa, perfeitamente, pensar sem coisas.
O certo é
que a falta de delimitação entre esses dois ambientes constitui o principal
entrave para que se possa expor, de forma clara, como foi possível o avanço
tecnológico, não obstante a já enfadonha objeção quanto à possibilidade de se
conhecer algo.
9.
A
correspondência entre o fenômeno e a síntese
A toda
impressão analítica há um correspondente juízo sintético que é verdadeiro em si
mesmo e não está sujeito a variações culturais. Todo e qualquer objeto sensível
produz exatamente o mesmo juízo sintético entre seres da mesma espécie[5].
O ser
humano, no entanto, carente de parâmetros analíticos naturais, acaba
encontrando dificuldade para estabelecer correspondência entre impressões
espaciais ou temporalmente diferentes. O refinamento no exame analítico pela
inteligência humana, proporcionado pelo uso de instrumentos, tem demonstrado
que, mesmo quando aparentemente isso ocorre, o acúmulo de informações ainda não
é suficiente para se ter certeza da coincidência de ambos.
Nada parece
mais evidente nessa realidade do que o exame da noção temporal. Do critério
inicialmente representado pelo movimento da terra em relação ao sol, no
decorrer de um dia, ao do movimento de elétrons, na medida em que se acumulam
novos conhecimentos no campo da realidade natural, o homem se vê obrigado a alterar
os critérios que definem a noção de tempo.
Mas isso não
significa que a falta de certeza quanto à coincidência entre fenômenos
constitua obstáculo à construção da ciência, pois na medida em que o
desenvolvimento tecnológico permite ao homem a ampliação de seu horizonte
analítico, reformula-se o juízo sintético, agora referido à nova impressão.
Nesse caso, não há falsidade do juízo anterior, mas novo juízo, construído a
partir dos dados apreendidos na realidade natural.
As
impressões e juízos são sempre coincidentes e se manifestam da mesma forma
entre seres da mesma espécie, bastando examinar o comportamento dos animais em
relação ao movimento ou ao uso de suas habilidades diante de obstáculos para
perceber-se que, salvo em caso de grave trauma no processo evolutivo, o
comportamento diante de situações semelhantes será o mesmo.
Por óbvio
que estamos falando, aqui, de aptidão inata, razão pela qual é necessário
registrar que, no caso da introdução de juízos sintéticos mediante processo de
adestramento ou trauma, é possível alterar essas relações de tal forma a
induzir a comportamentos diversos em situações semelhantes entre seres da mesma
espécie.
Mas esse é
um assunto que precisa ser examinado não sob o ângulo da filosofia, mas da
psicologia, a qual haverá de identificar a correspondência entre juízos
sintéticos e comportamentos, agora tendo o ser (inclusive o homem) como
fenômeno complexo, levado a agir a partir de relações que estabelece entre
impressões e juízos.
[1] Os juízos
matemáticos são puramente sintéticos. No entanto, quase sempre estão
representados por coisas. Somar laranjas ou qualquer outro objeto pode
constituir recurso para introduzir os iniciantes no estudo da matemática, mas
basta acompanhar o aparecimento dos primeiros problemas para se constatar que
eles dificultam a exposição das idéias e corrompem espíritos de tal forma que
muitos jamais conseguem recuperar a capacidade de compreendê-la corretamente.
[2] O uso de
modelos como recurso teórico é revelado pelo sucesso de recentes estudos que
tentam explicar a sociedade humana a partir do exame de estruturas celulares.
[3] Se as
explicações dos astrônomos sobre as estrelas estiverem corretas, o que vemos
hoje no firmamento são apenas impressões enviadas por elas há milhões de anos.
As estrelas de hoje, no atual estágio da ciência, analiticamente, jamais serão
conhecidas.
[4] Não é
objetivo deste ensaio examinar o tema sob esse ângulo, mas parece possível
existir essa capacidade, em maior ou menor grau, em todos os seres vivos.
[5] Somente
uma visão esquizofrênica do mundo pode sustentar a existência de diferentes
juízos sintéticos para idênticas impressões analíticas.
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