João
Bonumá
NOTA.
Agradeço a Marco Verri, da Livraria Nova Roma, pelo auxílio na localização de
suas obras, ao Ministro Paulo Brossard pela gentileza aceitar falar sobre ele,
a Eduardo e Lívia Bonumá, seus netos, que guardaram nestes últimos anos
importantes arquivos que servirão para ajudar, no futuro, a conhecer um pouco
melhor a história do Direito em nosso Estado.
Filho de pai francês, Marcel Bonumá e de mãe brasileira,
Numeralda Geiger, João Geiger Bonumá nasceu em Uruguaiana, em 21 de fevereiro
de 1890, e faleceu em Júlio de Castilhos, no dia 15 de junho de 1953, foi um dos
mais importantes juristas gaúchos do século XX.
Com apenas 15 anos de idade, um discurso que fez em
saudação ao inspetor geral das ferrovias do país, Gahance Custin, rendeu-lhe
apoio para estudar na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, onde se
formou em 1911.
Em sua obra sobre menores abandonados, ele registra que, em
1909, quando ainda estudava na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, para
atender suas necessidades financeiras, foi trabalhar na polícia carioca,
convivendo de perto com o problema da infância delinquente, tema que seria
objeto de seu primeiro estudo, “Menores abandonados e criminosos” (1913, 131p,
Officinas grafhicas da “Papelaria União”- S. Maria).
O livro nasceu da tormentosa experiência vivida já no
primeiro dia de seu trabalho, quando encontrou “...em uma sala sujíssima
e humida quatorze crianças, enlameadas e esfarrapadas que dormiam sob o
assoalho, aconchegadas umas sobre as outras, n’um somno a todo instante cortado
por estremecimentos de frio.”
Essa obra, dedicada ao Ministro Leoni Ramos (chefe de
polícia na época em que trabalhou no Rio de Janeiro), inicia com uma frase de
Jesus Cristo, “Sinite
parvulos venire ad me” (vinde a mim as criancinhas), é publicada
quando tinha apenas 23 anos, revelando sua sensibilidade e preocupação social.
Foi um trabalho, como ele mesmo registra, feito com muito
amor, na melhor quadra de sua mocidade. Para escrevê-lo, entrevistou menores
que viviam nas ruas do Rio de Janeiro (Bernardina Estella, Luiz de Oliveira,
Manoel José Batista, João Lucas, Francisco Tito Nogueira e Arthur Joaquim de
Almeida) com o objetivo de traçar o perfil psicológico desses menores
abandonados, visitando também, e pessoalmente, todas as instituições
encarregadas de atendê-los, como a Escola de Menores Abandonados (“...uma vergonha para
nossos fóros de civilisados; antes não existisse”) - , o Instituto
Profissional e a Escola de São José, a Colônia Correicional de Dous Rios e a
Casa de Detenção.
A obra é de grande atualidade. Passados noventa anos de sua
edição, se apenas mudássemos os nomes da Escola de Menores Abandonados para
FEBEM ou outras instituições do gênero hoje, com certeza, o leitor não notaria
que o trabalho foi escrito em 1913. São interessantes as informações trazidas
em seus estudos, especialmente no que diz respeito à legislação francesa
vigente entre 1830 e 1905, que optou pelo recrudescimento da pena, comparado
com o sistema adotado na Suíça, cuja escolha se deu por um sistema de
assistência aos menores. Considerando a realidade desses dois países, enquanto
na França a criminalidade quintuplicou, na Suíça, de 1270 menores assistidos,
apenas 33 voltaram a delinqüir.
Ao ler o livro é impossível deixar de concordar quando, manifestando-se
contra a imputação criminal, em razão de atos praticados por menores, ele
afirma: “O que
cumpre à sociedade è lançar a taboa de salvação a esses desgraçados e não
mergulhal-os mais na miséria em que elles de debatem; não é de cadeia que elles
carecem, mas de proteção e auxílio.”
João Bonumá também estudou o “Regimem da Soldada”
em artigo publicado em um jornal em 24 de maio de 1912, provavelmente em Santa
Maria, cujo sistema, ainda baseado nas Ordenações Filipinas, permitia que
pessoas participassem de um pregão realizado depois das audiências, em que
crianças com mais de sete anos eram levadas por famílias “per soldada”,
para serem educadas.
Ao exercer a função de juiz de órfãos, descobriu “escabrosidades”
cometidas contra os pequeninos através desse instituto. Segundo ele, “famílias ha, (...)
que timbram em procurar orfhãs ainda na primeira infância, que ellas criam em
casa como amas seccas, desmoralizando as com a pratica de todas as baixezas e
reservando-as para, quando chegarem ao raiar da puberdade, servirem de amantes,
de borregas de seus filhos, evitando assim que estes se entreguem á prática de
actos, que a medicina diz serem nocivos e communs nos rapazes, ou então que se
pervertam na immundicie dos prostíbulos, onde a sua natural inexperiencia os
leva a serem fatalmente victimas das molestias venereas mais atrozes.”
A mesma sociedade que recorrentemente busca saída para a
delinqüência infantil no aumento do rigor do direito penal, em torno desse
artigo fez, “...um
silêncio gelado, um mutismo sepulchral.. Não despertou um commentario siquer,
nenhuma objeção lhe foi alevantada.”
Esse estudo, praticamente desconhecido, revela o espírito
magnânimo de Bonumá e precisa ser revisitado, se não para resolver os problemas
que aí estão, ao menos para que possamos constatar que eles ainda hoje são os
mesmos.
Mas foi no estudo do Direito que ele haveria de dar a sua
maior contribuição ao país, lamentavelmente interrompido pela ingrata
fatalidade de sua precoce morte, na melhor fase de sua produção intelectual.
João Bonumá foi um grande processualista e o que escreveu na única edição de
sua obra em 1946 é um verdadeiro monumento à ciência do processo. “Se a sentença pudesse
ser proferida logo após a solicitação da parte interessada...”, dizia ele,
“...não haveria
necessidade de processo. As coisas se passariam sumariamente, com a instantânea
declaração e aplicação do direito. Mas isso nunca foi possível, a não ser em
casos perfeitamente excepcionais. A provisão é sempre o resultado final de uma
longa série de atos que se sucedem uns aos outros, formando um complexo de
atividades dos interessados, do órgão jurisdicional e de terceiros (...)
formando todos uma unidade em relação ao fim que se tem em vista conseguir.”
A referida obra, de profunda maturidade intelectual,
saudada na Argentina por Santiago Sentis Melendo como “um tratado completo
de la materia sobre la base legislativa del derecho brasileño y la base
científica de las modernas corrientes doctrinales...” (Revista de Derecho
Procesal, 1947, 1a parte, p. 50), foi haurida num período cujo
início dos estudos datam de 1935, quando escreveu “Do juízo arbitral”. Nele é
examinado o Código de Processo Civil e Commercial do Estado do Rio Grande do
Sul (lei 65, de 15 de janeiro de 1908), cujos primeiros 36 artigos são
destinados à regulação da solução privada dos conflitos e de outro importante
estudo dado conhecimento em 1936, quando publicou o artigo “O Processo e seu
Conceito”.
Nesse estudo com verdadeiro tom profético, ao discorrer
sobre a função do processo, relembra o ensinamento de Ihering à época, ao
afirmar que “Julgar
um direito como se faria com um sistema filosófico, seria um erro profundo. O
direito não deve ser considerado sob o ponto de vista de seu mérito
intelectual, de ordenação lógica de seus membros e de sua unidade. Pouco
importa que, sob êsse aspecto, êle pareça uma obra de arte, porque não é aí que
reside o seu valor. Êste se encontra inteiro nas suas funções, isto é, na
possibilidade de sua realização prática. Que importa que uma máquina apresente
o aspecto de uma obra de arte, se, como máquina, ela é imprópria para o uso.”
João Bonumá foi genial e quando editou sua mais importante
obra já dominava, com profundidade, as modernas doutrinas processuais, como
pode ser percebido pela leitura do seu trabalho, editado pela Saraiva, em 1946,
e que chegou à mão de seus alunos no início de 1947, sem ficar devendo
absolutamente nada aos demais estudos conhecidos à sua época nessa área.
Mas não produziu somente essa obra. Também desenvolveu trabalhos
noutras áreas, entre os quais se destaca a tese de cátedra “O Bloqueio Marítimo e
o Direito Internacional” (Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1936,
191p). Nesse trabalho ele tratou de temas ainda incipientes sob o ponto de
vista dessa disciplina, que somente viria a desenvolver-se verdadeiramente na
década seguinte, após findada a Segunda Guerra Mundial.
Além de serem examinados os principais tratados sobre o
assunto, foram estudadas situações interessantes, como a do bloqueio promovido
pela Inglaterra contra a Grécia em 1850, para que ela desse satisfação sobre
uma dívida de 21.925 libras esterlinas a um cidadão Inglês. O bloqueio foi
cessado após quase deflagrado uma guerra com a Rússia, pelo pagamento de uma
indenização de 150 libras esterlinas.
O referido trabalho tem hoje, entre tantas outras, a
virtude de demonstrar quanto evoluiu nosso Direito Internacional, especialmente
ao dar conhecimento de situações em que o bloqueio marítimo era utilizado para
resolver problemas privados dos governantes.
João Bonumá também levou a cabo outras investigações, como
o “O crime do sono” (1933), estudo de Direito Penal, tendo ido buscar na
cultura Grega e na psicologia, os fundamentos para demonstrar que os atos
praticados durante o sono não constituem matéria criminal.
Ele também foi Juiz de Órfãos (registrado em uma passagem
do livro sobre menores), professor do que hoje seria o ensino médio e Juiz
Distrital (Municipal) em Santa Maria. Ainda desempenhou as funções de Subchefe
de Polícia no governo de Borges de Medeiros (1925/28). Em 1935, transferiu-se
para Porto Alegre, tendo sido aprovado em concurso para a Faculdade de Direito
onde lecionou “Direito Judiciário Civil” até o ano de 1951, quando se aposentou
por motivos de saúde, sendo substituído por Galeno de Lacerda, seu professor
assistente.
Exerceu também o cargo de Procurador Geral do Estado no
Governo de Walter Jobim (1946 a 1950), tendo redigido uma série de célebres
pareceres. Também foi vice-presidente do Instituto dos Advogados do Rio Grande
do Sul, conselheiro da OAB e um atento observador dos acontecimentos de Porto
Alegre, conforme registram os quatorze volumes encadernados de uma coletânea de
matérias que organizou e anotou de próprio punho, entre 1938 e 1941, sobre os
fatos jurídicos relevantes desse período, dentre os quais os debates a respeito
do nosso primeiro código nacional processo.
Em 15 de junho de 1953, em sua fazenda em Júlio de
Castilhos João Bonumá faleceu em decorrência de problemas cardíacos que o
haviam obrigado a jubilar-se, tendo se dedicado aos estudos até seu último dia
de vida.
Seu dileto e ex-aluno, Ministro Paulo Brossard, relata um
fato ocorrido certo dia em que visitou o professor João Bonumá ainda em Porto
Alegre. Nessa oportunidade, ter-lhe-ia dito: “veja só Brossard como
são as coisas. Logo eu, que sempre tomei gosto pela literatura, ao aposentar-me
imaginei poder me dedicar à leitura de nossos clássicos. Todavia fui proibido
pelo meu médico. Não posso emocionar-me e, desde então, para passar o tempo,
dedico-me à leitura do Direito Romano.”
Sua bisneta Lívia Bonumá, que atualmente reside em
Tupanciretã, têm, entres outros livros importantes que pertenceram a João
Bonumá, as obras completas de Nietzche traduzidas para o francês por Henri
Albert Huitieme, em 1902, e os seis volumes sobre a teoria positivista de
Augusto Comte lidas e notadas à mão por ele.
Que o cinquentenário da morte de João Bonumá sirva de
motivo para que os cultores do direito em nosso país, especialmente o povo
gaúcho que ele tanto honrou, revisitem sua obra.