Paulo JB Leal
Advogado e professor
Membro efetivo do IAB – Instituto dos Advogados
Brasileiros
Carlos
Maximiliano inicia seu clássico estudo sobre hermenêutica e
interpretação jurídica a partir da ideia de que interpretar é
determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. Esse
conceito, embora correto, é incompleto, pela metade. Melhor teria
sido se dissesse que “interpretar é
identificar os dados materiais e os processos lógicos utilizados nas
relações de imputação que determinam o sentido e o alcance das
expressões do direito”.
A
razão é singela. A interpretação jurídica é uma atividade que
opera no âmbito do sistema de inteligência do indivíduo. Sua
finalidade é normativa. Ordena o comportamento humano. E, se ela tem
por finalidade determinar o sentido e o alcance de uma expressão de
direito, essa expressão só se torna apreensível pelo sistema de
inteligência racional na medida em que torna evidente os dados
do mundo natural em que está assentada, assim como o
modo pelo qual eles estão relacionados aos processos lógicos de
imputação que estabelecem o seu alcance.
Por
isso, a interpretação é sempre complexa. Exige o atendimento de
pelo menos duas exigências: que sejam colocadas em evidência as
relações de inteligência, o iter
lógico da verificação de conformidade entre a proposição
normativa com os dados do mundo natural e, ainda, as relações de
imputação que a proposição estabelece entre esses dados e as
pessoas.
Etimologicamente,
do latim, o ato de interpretar está relacionado à ideia de
explicar, traduzir, revelar, “dar” sentido ao objeto da
interpretação. Esse conceito, no entanto, como será melhor
verificado no exame das relações de inteligência da atividade do
jurista, reduz o seu âmbito ao intelecto do intérprete, fazendo que
seja o exegeta, e não o mundo natural mediado por ele, quem dá
sentido à expressão jurídica.
Toda
expressão jurídica é sempre uma proposição linguística contendo
um enunciado bivetorial em que um dos apontadores descreve fatos e o
outro estabelece imputações nas relações entre fatos do mundo
natural e seres humanos. Essa é a razão pela qual toda a
interpretação jurídica precisa evidenciar a matéria, o dado do
mundo com o qual ela trata, assim como os processos lógicos
utilizados nas relações de imputação jurídicas entre fatos e
pessoas. Só assim, o processo de inteligência torna-se evidente,
pois é a objetividade, mediada pela racionalidade, que dá sentido
ao enunciado e não o contrário.
Essa
questão explica as razões da incompletude do conceito desenvolvido
por Maximiliano, que parte do pressuposto de que a interpretação é
sempre resultado da revelação hermêneutica a quem cabe dar sentido
ao enunciado, ao invés de fazer dela um modo de condução da razão
na identificação da matéria, assim como os processos lógicos
presentes na proposição linguística que, mediados pelo homem,
produzem imputações sobre fatos do mundo natural.
Tal
entendimento é de fundamental importância para o processo
hermenêutico, pois permite que as proposições de direito produzam
eficácia na esfera das relações intersubjetivas. Afinal, o direito
não existe sem o homem e todo o enunciado jurídico constitui, antes
de tudo, um guia da inteligência com a função de ordenar a vida
individual no âmbito da sociedade.
a. Fato
natural e fato jurídico
O
nascimento ou a morte de alguém, a queda de uma árvore, o curso de
um rio ou uma tempestade são fatos coordenados pelo mundo da
natureza que independem da vontade ou do querer humano. Constituem
acontecimentos totalitários que a ação humana pode intervir em
determinada medida para alterar o curso, o tempo, mas que, ao final,
acabam submetendo totalmente todos os seres. Do ponto de vista da
razão, esses acontecimentos devem ser, portanto, tomados por fato
natural, o que inclui, obviamente, o próprio homem.
Quando
tais eventos naturais, por estararem relacionados direta ou
indiretamente a seres humanos por sistemas normativos de imputação,
estabelecerem consequências nas relações entre pessoas, o simples
fato da natureza ganha uma qualidade especial: torna-se fato
jurídico.
Essa
questão é a mais relevante instituição da sociedade civilizada
por constituir as bases racionais de ordenação do universo do
direito. Por conseguinte, identificar os elementos que compõem os
fatos naturais e os decorrentes da ação humana que ingressam no
âmbito da juridicidade, assim como a amplitude de incidência do
sistema de imputação que organiza o ambiente de inteligência
utilizado pela razão jurídica, é a tarefa mais importante do
hermeneuta e o objetivo a ser perseguido neste estudo.
b.
Fato e ação humana no ato jurídico
Toda a proposição jurídica compõe um silogismo
contendo a descrição de um fato hipotético, que pode ser simples,
como o fato natural, de conformação espontânea ou complexo, como o
decorrente da ação humana, seguido de imputação relacionada a ele
e a ser verificada no plano da realidade objetiva. A primeira parte
do silogismo é dirigida ao mundo natural, à parte que se relaciona
com o sistema orgânico dos indivíduos, descrevendo algo; a segunda,
à razão, estabelecendo consequências, imputações, a serem
verificadas no plano das relações intersubjetivas.
Fato e imputação são, portanto, os dois momentos
constitutivos de toda proposição jurídica. Não há quem sustente
o contrário e seria absolutamente singelo para o direito ordenar um
sistema baseado nisso se não fosse um problema transcendental que a
fenomenologia jurídica precisa enfrentar quando incorpora a volição
humana entre os elementos constitutivos do fato hipotético de uma
determinada proposição jurídica.
A volição, na composição do silogismo jurídico,
transforma o fato simples em ato, que constitui um fato complexo,
pois exige que seja considerada, para ingressar no plano da
faticidade jurídica, a relação de conformidade entre o ato e o
direito objetivo. Também é preciso verificar a capacidade subjetiva
de quem o pratica e, ainda, examinar a relação de coordenação
entre a ação e o resultado do ato. Somente depois disso é que o
fato ingressa no âmbito da fenomenologia do direito ao ganhar
existência na forma de ato jurídico.
Como pode ser constatado por essas razões, apenas o
momento do ingresso do simples fato à condição de ato jurídico já
é mais do que suficiente para compor diversos exames. No entanto,
como o objetivo deste estudo é verificar a aplicação do direito
pelos juízes, crê-se ter sido destacada, de modo suficiente a ser
entendido, a distinção entre ambos.
c.
Fato, realidade e razão humana
Inicialmente,
é preciso destacar que as relações entre homem e universo se dão
de dois modos distintos: um, em que ambos constituem totalidade
absoluta e outro, em que o homem é uma das infinidades de partes
desse mesmo universo, no qual ele se distingue por ser dotado da
capacidade racional.
Portanto,
para tratar de qualquer tema com o de entender o uso que o homem faz
da razão, é preciso examinar os processos lógicos utilizados na
ordenação das relações entre totalidade e parte (universo e
homem) na constituição do sistema de inteligência racional.
Do
ponto de vista dos processos materiais que produzem a inteligência
racional, todo e qualquer evento que ocorra no universo relacionado a
um dos sentidos humanos é impresso no organismo por meio da
sensibilidade. Essa impressão independe da volição, do querer
humano e, quando ela ocorre, é sintetizada compulsoriamente no
organismo, modificando o ser humano, que se transforma, passa a ser
diferente, pois deixa o organismo do estado anterior para ser outro,
o novo, modificado pela síntese da impressão produzida pelo fato
natural.
Toda
vez que um som é emitido, uma onda longitudinal, de forma
circuncêntrica, produzirá vibrações que serão sintetizadas pela
cóclea humana; quando partículas se desprendem de um objeto,
excitam o olfato e sensibilizam o epitélio de modo a fazê-lo
produzir sínteses dessa matéria no organismo; quando um feixe
luminoso incide sobre algo, a reflexão da luz carrega a retina com
diferentes comprimentos de ondas eletromagnéticas, moldadas com
dados relativos à forma e cores do objeto em que foram refletidas,
que serão sintetizadas pelo lobo occipital; quando elementos tocam
as papilas gustativas, informações sobre a composição química e
orgânica dos elementos serão sintetizadas pelo palato; quando
determinada matéria entra em contato com o corpo de alguém, células
sensoriais produzirão sínteses no organismo humano com informações
sobre a tessitura e condições térmicas do objeto.
Todos
esses processos químicos e físicos produzem impulsos elétricos,
encaminhados para diferentes regiões do organismo, cada um deles
especializado na ordenação dos dados sensíveis, de modo a compor
um complexo sistema de memórias (sínteses) que passarão a
representar, no sistema de inteligência racional, os dados
produzidos pela objetividade fenomênica sobre o organismo.
Do
ponto de vista humano, esse é o universo no qual a razão se
reconhece e isso é o que ela passa a tomar por conta da “realidade”:
impressões produzidas por fenômenos, pela objetividade sensível,
que resultam em sínteses dos impulsos elétricos produzidos no
organismo por essas impressões.
Por
conseguinte, tomando-se o universo na perspectiva humana, ele não
passa de sínteses representativas das relações entre totalidade e
parte (homem e universo) produzidas pelas impressões fenomênicas
por meio da sensibilidade.
São
essas impressões que compõem o sistema de dados que é tomado na
conta de realidade objetiva. Para o homem, o universo, ou as coisas
que o integram, não passam de sínteses produzidas por suas
sensações e são elas que precisam de distinção em qualquer
estudo que tenha o sincero e honesto propósito de tratar de temas em
que seja preciso distinguir, em um silogismo lógico, fatos e
imputações racionais produzidos pela razão humana.
d. O
problema da verdade e da justiça no direito
Se
a distinção entre fato e realidade, do ponto de vista racional,
envolve toda essa complexidade, imagine, então, definir o que deve
ser tomado na conta da verdade e do justo na perspectiva de
diferentes pessoas, especialmente quando elas se encontram em
relações de conflito. Sem dúvida, essa é uma das mais difíceis e
intrincadas questões a serem tratadas pelos sistemas que têm por
função resolver litígios, pois estabelecer critérios seguros a
respeito dos processos lógicos a serem observados em julgamentos é
uma tarefa que exige a ordenação de um sistema de inteligência
próprio do sistema jurídico.
De
Salomão a Malatesta indaga-se: O que é verdade? O que é e como são
produzidas as noções que a razão toma como guia para conduzir os
juízos humanos sobre o mundo da natureza? Existem verdades
universais? É possível encontrar critérios para verificar o
percurso lógico utilizado na formulação das noções que o homem
toma como fundamento das suas ideias a respeito de si e das demais
pessoas que fazem parte do mundo em que vive?
Sem
exagero, os temas das verdades e do justo envolvem discussões que
estão sempre envoltas de mistérios e de mitos e, quando tratados em
meio a seres espiritualmente toscos, se transformam no principal
instrumento da trapaça, da ilusão e do logro. O certo é que, para
o indivíduo comum, justiça é sempre a concordância entre seus
interesses com os dados do mundo em que ele vive, e verdade é tudo
aquilo que ele toma em consideração para que seus interesses se
realizem.
Logo,
entender os processos de ordenação racional e as bases materiais
nas quais se assentam as noções utilizadas no âmbito do direito,
em especial na teoria da justiça, é a principal tarefa a ser
cumprida pelo jurista, pois é ela que promove higidez nos sistemas
que tendem a facilitar ou a interditar posições humanas em face da
multiplicidade de interesses que atuam sobre os agrupamentos sociais.
Por
isso, imaginando ter conseguido demonstrar, mesmo que
perfunctoriamente, os processos lógicos e os dados materiais que
constituem a realidade no sistema orgânico dos indivíduos,
pergunta-se: é possível encontrar critérios seguros para verificar
como são estabelecidos os relacionamentos que o homem utiliza,
auxiliado por seus sentidos, para produzir as noções que ele
emprega para pensar sobre si e sobre as demais pessoas que fazem
parte do mundo em que vive?
Obviamente
que esse tema permite vários e múltiplos enfoques, já tratados em
dois outros estudos,
mas, como o objetivo aqui é examinar, do ponto de vista do direito
objetivo, o dever de fundamentação das decisões judiciais,
deixa-se essa investigação para outra oportunidade, se é que já
não foi suficientemente tratada naqueles textos.
e.
Verdade real e verdade processual
As
relações que se estabelecem entre organismo humano e objetividade,
na constituição dos dados que o sistema de inteligência toma por
conta da realidade, são sínteses de impressões produzidas por meio
das sensações.
As
sensações são as mediadoras das relações entre ser humano e
natureza, mas, embora seja possível imaginar que o homem consiga
pensar objetos ou coisas quando trata sobre o mundo, isso não passa
de uma imensa ilusão. Ele pensa sobre as sínteses que a
objetividade produziu em seu organismo por meio das sensações ou,
no máximo, quando os dados são dotados de atualidade, sobre as
impressões imediatas causadas pela matéria do fenômeno sobre sua
sensibilidade.
Esse
é o motivo pelo qual as paisagens, os sabores, os cheiros, os sons
ou a intensidade térmica de objetos que estiveram em contato com a
sensibilidade humana, embora nunca mais sejam vistos, saboreados,
olfatados, ouvidos ou apalpados, permanecem presentes no sistema de
racionalidade, mesmo depois de transcorrido tempo do momento em que
ocorreram.
Essas
impressões compõem as sínteses que constituem as memórias dos
indivíduos, tomadas na conta das verdades acumuladas no curso de
suas existências. No entanto, não passam de memórias de sensações
referidas a seres, ações, objetos e coisas e não seres, ações,
objetos e coisas como a desatenção os leva a imaginar.
Portanto,
distinguir essa dimensão da racionalidade é o único modo possível
para identificar o que se pode tomar na conta de verdade “real”.
Verdades são memórias de sensações e distintas de relatos de
memórias de sensações, os quais constituem o sistema das crenças
ou das verdades processuais, ou seja, a matéria-prima das ideologias
que tanto se presta para a manipulação da razão humana nas
relações estabelecidas na vida em sociedade.
A
verdade processual, diferentemente da real, não decorre de
impressões produzidas pela objetividade no plano da sensibilidade,
mas da capacidade que todo ser humano possui de imaginar, ou de
produzir ideias, tomando as suas experiências como modelo de
ordenação do sistema racional.
Essa
distinção é relevante pois, se interpretar é identificar os dados
materiais e os processos lógicos utilizados nas relações de
imputação que estabelecem o sentido e o alcance das expressões do
direito, pôr às claras os processos pelos quais esses dados são
identificados no percurso racional utilizado pelo intérprete é o
único modo de ter controle sobre as bases que constituem o resultado
da interpretação.
Nesse
sentido, Maximiliano expõe, em sua obra, que interpretar é
determinar o sentido e o alcance das expressões de direito, pois
cabe a ele fundamentar, pôr em evidência, a matéria constitutiva
dos fatos dotados de juridicidade com a qual ele trata. É isso que
permite o controle dessa atividade de modo a fazer com que ela não
seja produzida de forma totalmente arbitrária.
f. Da
fundamentação das decisões judiciais
A
sentença judicial, como todo o ato jurídico, também está sujeita
à verificação da sua conformidade com o direito objetivo do
Estado, à capacidade objetiva e subjetiva de quem a profere e,
igualmente, à relação de coordenação entre a ação e o
resultado. Como toda proposição jurídica, ela também compõe um
silogismo lógico que contém a descrição de fatos, seguido de
imputações que incidem sobre a vida humana em sociedade. Essa é a
razão pela qual estabelecer, compulsoriamente, proposições que
contenham o percurso lógico a ser seguido pelo juiz em sua
atividade, tem sido um objetivo insistentemente buscado pelo
legislador.
Em
uma República, nenhum poder é maior que o do Juiz. Investido de uma
autoridade quase absoluta, ele presta contas de sua atividade apenas
à razão, pois exerce uma função em que a palavra fundamentada nas
noções de verdade, de legalidade e, agora, com a introdução de
princípios com funções normativas, de justiça, converte-se em
força bruta ao ganhar legitimidade para determinar a alteração na
situação patrimonial e na liberdade dos indivíduos.
Nesse
sentido, é de suma importância o controle da atividade utilizada na
função judicial, delimitando claramente como deve ocorrer o
percurso lógico-racional utilizado em julgamentos de maneira a
impedir que ele seja arbitrário, sem controle. No caso, o dever de
fundamentação das decisões dos juízes é a única forma de
submeter essa atividade à razão instrumental, própria do sistema
jurídico.
O
motivo da exigência dessa fundamentação é relativamente singelo.
Para o juiz, os fatos, tanto os naturais como os humanos, só chegam
ao seu conhecimento enquanto narrativas. São relatos de autores, de
réus, de testemunhas, peritos, mas não passam, jamais, de
narrativas e não há, salvo em raríssimos casos de fatos típicos
que eventualmente possam ocorrer na presença do julgador, verdade
real a ser tomada em consideração. Para o juiz, a verdade é sempre
processual e é produzida apenas em seu intelecto por meio de relatos
já que a realidade, historicamente, está no passado dos sujeitos
que promovem narrativas por meio do processo judicial.
Poe
essa razão, justifica-se a exigência da equidistância do juiz em
relação aos sujeitos que participam das narrativas, pois esse é o
único modo de assegurar a todos os participantes do teatro judicial
as mesmas oportunidades na produção do material que formará seu
convencimento e servirá de argumento retórico de validação de sua
atividade.
g.
Escorço histórico do tema
No
Brasil, a primeira lei, ao que parece, com o objetivo de regulamentar
a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais vem do
Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850, que tratava das
disposições relativas ao processo comercial. O art. 232, do
regulamento que “Determina
a ordem do Juizo no Processo Commercial” estabelecia que
a sentença deveria “...ser clara,
summariando o Juiz o pedido e a contestação com os fundamentos
respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando sob
sua responsabilidade a lei, uso ou estylo em que se funda.”
Posteriormente,
passado o período das legislações processuais dos Estados, o
Decreto-lei 1608, de 18 de setembro de 1939, conhecido por ter sido o
primeiro Código Nacional de Processo do Brasil, no art. 280,
estabelecia que a sentença deveria ser clara e precisa, contendo o
relatório, os fundamentos de fato e de direito e, por fim, a
decisão, que foi praticamente repetida no Código de Processo Civil
de 1973, cujo art. 458, determinava que o juiz deveria estabelecer,
na sentença, os fundamentos em que
analisou as questões de fato e de direito.
A
grande inovação em relação a esse tema foi dada pela Constituição
de 5 de outubro de 1988, ao introduzir, de forma categórica, no art.
93, IX, a obrigatoriedade, sob pena de nulidade, da fundamentação
das decisões judiciais.
Embora
essa obrigação já estivesse implícita nos textos legais desde
1850, a obrigatoriedade de fundamentação sob cominação de
nulidade foi a grande inovação da Constituição Federal de 1988.
Por
fim, o Código de Processo Civil de 2015, disciplinando integralmente
o que constava do texto da Constituição Federal, estabeleceu que
não se considerava fundamentada a decisão judicial que se limitasse
a indicar ato normativo sem explicar sua relação com a causa ou a
questão decidida; empregasse conceitos jurídicos indeterminados sem
explicar o motivo concreto de sua incidência; invocasse motivos que
se prestariam a justificar qualquer outra decisão judicial; não
enfrentasse todos os argumentos deduzidos no processo capaz de
infirmar a conclusão adotada no julgamento; se limitasse a invocar
precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos
determinantes nem demonstrasse que o caso sob julgamento se ajustava
àqueles fundamentos; deixasse de seguir enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado pela parte sem demonstrar a
existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento. E, ainda, no caso de colisão entre normas, deveria
justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação,
enunciando as razões que autorizam a interferência na norma
afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão
adotada.
Conquanto
esse tema também tivesse sido tratado pelo processo penal,
trabalhista, juizados especiais, entre outros, em linhas gerais, o
sistema normativo tratando do dever de fundamentação das decisões
são esses, ou seja, que o juiz, para que possa decidir validamente,
tem o dever de examinar os fatos dotados de juridicidade (dados
materiais), invocados pelas partes para fundamentar pretensões, e
indicar as relações desses fatos com o sistema de imputação que
determinam o sentido e o alcance das expressões produzidas pelo
direito. Do contrário, seu agir é arbitrário, fazendo com que o
próprio juiz, a quem o Estado incumbiu a missão de fazer com que as
pessoas se submetam à legalidade, seja o agente de violação do
sistema jurídico.
h. Do
exercício arbitrário da função judicial
Conforme já
exposto, diferentemente do que ocorre com os integrantes dos demais
poderes, no Brasil de Regime Republicano, os juízes exercem poder
quase absoluto. Enquanto os poderes legislativo e executivo ganham
legitimidade para exercer suas funções por delegação do sufrágio
universal, a legitimidade dos juízes decorre apenas da aprovação
em processo seletivo
realizado pelos próprios integrantes do Poder Judiciário e o único
meio de que a sociedade dispõe para controlar esse poder, pessoal e
vitalício, é obrigá-los a fundamentar as suas decisões.
No entanto,
é importante ressaltar que a fundamentação não é livre ou
discricionária. Menos ainda arbitrária e tampouco haveria razões
para a existência de leis dispondo o modo pelo qual a fundamentação
de uma decisão judicial deva ser feita, pois ela ocorre quando são
expostos, claramente e em ordem, os elementos de racionalidade
utilizados na delimitação da matéria tomada como existente e, do
mesmo modo, o iter
lógico da imputação, ou seja, os dados do mundo natural tidos como
fundamento de faticidade jurídica, assim como o percurso racional
deduzido do sistema normativo do Estado.
Tal questão
é da maior relevância para uma sociedade de indivíduos submetidos
ao processo civilizatório, especialmente quando diz respeito a
sujeitos investidos em funções de poder que têm por finalidade
fazer com que todos os membros de uma sociedade se submetam ao Estado
de Direito.
No entanto,
quando se verifica o nível de detalhamento da lei a respeito do
percurso racional a ser utilizado na fundamentação da atividade
judicial é porque algo de muito grave está a ocorrer na
administração da justiça. Ora, se foi preciso a atuação do
legislador para determinar o modo de condução da atividade
intelectiva dos juízes, própria da razão instrumental, é porque a
situação tornou-se insustentável. Então há que se investigar os
motivos pelos quais fatos como esse estão a ocorrer.
Diferentes
podem ser as respostas a essa indagação. Uma delas, mais evidente,
parece ser decorrente da crise que assola o desenvolvimento da razão
moderna, que antes mesmo de ter cumprido sua missão de dotar os
indivíduos de competências que os permitam assumir o domínio do
sistema racional, por ser totalmente incompreendida, tem sido dada
por superada.
Também é
possível imaginar que a ampliação desmensurada do âmbito de
intervenção da atividade judicial na sociedade humana tenha uma
parcela de responsabilidade por essa crise. Com a introdução de
fundamentos morais no ambiente da juridicidade e a transformação do
sistema de administração da justiça em espaço de disputa política
e de produção de riquezas, não há área alguma que não esteja
sob os domínios da função judicial. Isso acabou produzindo uma
avalanche de demandas de tal ordem que tornou impossível aos juízes
o exercício de suas atividades sem delegá-las a terceiros.
No entanto,
sejam quais forem as razões da crise, é dever do juiz, no exercício
de sua atividade, expor, de modo claro e preciso, a origem dos dados
tomados como existentes em sua decisão, assim como o modo pelo qual
foi produzido o sistema de imputações dotados de juridicidade que
utilizou, seja ele de natureza moral, decorrente de lei, de costumes
ou de qualquer outro preceito normativo. O certo é que decidir sem
dizer como o ato final, compulsório, que incidirá sobre os bens ou
a liberdade das pessoas foi produzido, de modo a dotar-se de
legitimidade, é algo totalmente inadmissível.
Em razão
disso é que, embora não haja previsão de fato típico específico
no sistema que disciplina o exercício abusivo do poder judicial, o
uso arbitrário de razões em uma atividade que deve submeter-se ao
controle de legalidade está a parecer que, no mínimo, infringe o
preceito disciplinado no art. 11,
da lei 8.429 de 2 de junho de 1992, visto que tal norma qualifica
como de improbidade todo e qualquer ato de autoridade que atente
contra os princípios da administração pública ou que, por ação
ou omissão, viole o dever da legalidade.