Palavra e razão civilizada
(Investigações
sobre ciência e linguagem)
“No princípio, era
o verbo” (João)
Considerações preliminares
Este texto é o
terceiro de três estudos sobre inteligência. O primeiro, “O ambiente sintético da ciência”, publicado em 2008, pôs em evidência
as relações orgânicas responsáveis pelo sistema de inteligência funcional nos
seres vivos; O segundo, “Ciência e
conhecimento no sistema de inteligência humano”, escrito em 2017, examinou as
relações formais - entre matérias - que constituem o sistema de inteligência instrumental
do homem, e; este último, encerrando o ciclo, analisa esses dois sistemas em
ação, produzindo a cultura civilizada nas sociedades humanas.
Entender como funcionam
os processos constitutivos da razão humana e de como são produzidas as noções
de certezas, de verdades e de crenças utilizadas pelas sociedades civilizadas é
o ponto de partida deste ensaio, que vem sendo gestado no curso de muitos anos
de investigações, no grupo de estudos sobre Inteligência Sebo Café.
Não tem sido uma
tarefa simples. Tampouco é um trabalho solitário. Essa missão vem sucessivamente
sendo realizada por diferentes pessoas no curso dos últimos séculos. Embora, ainda
hoje, questões complexas não tenham sido resolvidas, parece ser lícito acreditar
que, em algum momento, por mais difícil que possa parecer, ao menos o exame das
competências funcionais que permitem a existência da razão civilizada possa ser
dado por encerrado.
A empreitada é extremamente
difícil, uma vez que, para expor as ideias que põem em ordem as questões a serem
entendidas no estudo, é preciso, antes de tudo, encontrar argumentos para
demonstrar a necessidade de o pensador da atualidade livrar-se de avassaladores
impedimentos ideológicos, introduzidos em sua racionalidade, de forma sutil, pelas
instituições que adjudicaram completamente o exame desses temas no curso dos
últimos séculos.
Portanto, para
cumprir com o objetivo de examinar as competências funcionais da racionalidade humana,
é necessário pôr em evidência os processos utilizados pela razão para constituir
o sistema de relações transcendentes, submetendo o imanente. Essa é a questão
central a ser tratada neste ensaio. Sem entender isso, nada mais poderá ser
compreendido.
Aos que se
iniciam nesses estudos fica aqui, mais uma vez, o apelo sobre a necessidade de
partir do exame dos temas já resolvidos nos dois primeiros escritos. Neles, foram
explicitadas as relações que se estabelecem entre o organismo e o mundo natural
em que ele está inserido. Depois, as relações que o organismo produz a partir
do desenvolvimento dessa competência. Somente entendendo como esses dois
momentos são constituídos, é possível seguir em frente e romper com as amarras
ideológicas introduzidas na razão pela filosofia tradicional que, por ter
estado sempre sob contínua vigilância e tutela de sistemas produzidos no bojo
da escolástica[1],
não permitiu que o homem resolvesse questões elementares a respeito de sua
capacidade racional[2].
Utilizado esse
método como referência, os elos produzidos no curso dos séculos para manter
presos espíritos que deveriam ser naturalmente livres, haverão de romper-se. E,
quando isso ocorrer, o novo sistema constituir-se-á por conta própria.
Por óbvio que isso
não é fácil, pois o gozo proporcionado pela autossubmissão ao maniqueísmo da
revelação é muito mais cômodo e atrativo do que o reconhecimento de somente ser
possível a qualquer pessoa descobrir o universo, na mesma e na exata medida em
que descobrir a si mesma.
Organismo e inteligência funcional
Organismo e inteligência funcional
Todo o organismo é dotado de aptidões naturais
que o permite entender o meio em que vive, com a finalidade de desenvolver-se e
de relacionar-se com outros organismos, cumprindo ciclos naturais que têm início
na fecundação e se encerram
com a morte[3].
As fontes primárias que põem esse sistema em
funcionamento ainda estão fora dos domínios da ciência. Por isso, para tratar desse
tema, é preciso partir da constatação de que eventos extraordinários ocorrem na
natureza ao dotá-la com instruções para associar diferentes elementos, de maneira
a tornar possível a produção das bases embriogênicas da vida no planeta.
De onde surgem essas instruções, como elas são
produzidas e as razões pelas quais elas ocorrem, ainda não foram
suficientemente entendidas pela ciência de maneira a ser explicado em um
sistema de ideias. No entanto, como o homem sempre buscou saber sobre as suas origens
- e também sobre os fins últimos de sua existência - diferentes respostas[4]
são dadas, por diferentes instituições, na tentativa de explicar[5]
os fundamentos desse plexo fenomênico que rege os movimentos, a absorção e a fusão
entre matérias, no bojo de eventos extraordinários que ocorrem em um universo
que se apresenta aos sentidos do homem sempre em mutação[6]e
em contínuos e sucessivos processos integrando partículas e galáxias.
No curso desses fenômenos, significativos processos
distinguiram organismos dotando-os com competências particulares, que serão examinadas
no presente ensaio com o objetivo de investigar como foi possível ao homem produzir
e desenvolver um sistema de racionalidade instrumental, constitutivo das bases
sobre as quais está fundada a razão civilizada.
Para cumprir esse objetivo, nada é mais
relevante do que explicar, com clareza, como é possível ao homem pensar a
respeito do mundo que o cerca, tendo-se presente de que, para isso, ele dispõe apenas
da mediação do olfato, do tato, do gosto, da audição e da visão, todos
utilizados no bojo de um sistema programado por algoritmos naturais que lhe impõem
a obediência a duas instruções que estão na base da sua existência: manter-se
sempre vivo e reproduzir-se[7]
permanentemente.
Qualquer organismo, por mais elementar que
seja, distingue-se no mundo natural, pelo fato de ser dotado de um sistema com instruções
suficientes que o permite adaptar-se e reproduzir-se para manter-se sempre vivo,
até que cumpra totalmente o ciclo que inicia na fecundação[8]
e encerra com a morte.
De que outra forma seria possível explicar a
possibilidade da cissiparidade, da esporulação, do brotamento e da gemulação,
assim como a fecundação (interna, externa, cruzada, etc) na reprodução, que não
seja a existência de um sistema de inteligência coordenando tudo isso? Igualmente,
como seria possível explicar a mitose (interfase,
prófase, metáfase, anáfase e telófase) e meiose celular, senão pela constatação
da existência de um complexo sistema natural que informa ao organismo os
elementos que são necessários (e de como eles devem ser organizados) para a
reprodução endógena de suas células e, no curso desse processo, tome
iniciativas para tornar possível sua reprodução exógena, de forma a
perpetuar-se enquanto espécie no planeta?
Portanto, a
primeira questão a ser dada por resolvida neste estudo é a de que os organismos
só são organismos pelo fato de estarem sob a condução de processos naturais que
os distinguem entre os demais elementos do mundo fenomênico por serem dotados
de um inato sistema de inteligência.
Inteligência Racional[9]
Inteligência Racional[9]
A racionalidade é a parte constitutiva e
ordenadora do universo humano que está na base dos sistemas culturais. Ser
racional é ter o mundo ordenado pela razão. É ter desenvolvido um sistema de
inteligência do mundo da natureza. No homem, a inteligência racional é
constituída tendo uma parte diretamente relacionada à inteligência funcional,
que é inata, por meio dos sentidos, e, outra, cultural, produzida no curso do
desenvolvimento da aptidão natural de guardar memórias e de estabelecer relações
entre matérias e forma de fenômenos impressos na sua capacidade de receber
representações[10]
do mundo da natureza, por meio de sensações.
Enquanto a inteligência funcional é orgânica e
inata, a inteligência racional decorre da cultura e é produzida pela razão. Essa questão é de extrema relevância. Distinguir
a inteligência funcional[11]
da inteligência racional é a atitude metodológica que põe em ordem as primeiras
questões que precisam ser compreendidas neste estudo. É essa distinção que permite
entender, e explicar, até onde é possível examinar a racionalidade sem levar em
consideração as relações que ela estabelece, de modo direto, com a objetividade
pois, se em todos os organismos há um sistema que age coordenado pelos
processos que permitem a existência da vida, esses processos precisam ser
considerados ao verificar-se como eles são utilizados no desenvolvimento de um
sistema que se emancipa deles e passa a atuar orientado apenas por memórias[12]!
Esse é o
principal motivo pelo qual é preciso distinguir, para entender, as razões da
necessidade de diferenciar as sínteses das memórias que resultam das
sensações, das sínteses que são produzidas a partir das memórias das
sensações. Embora essas duas espécies de sínteses sejam constitutivas do
sistema racional que o homem produz e
utiliza no curso de sua existência para guiar a razão, e tenham fontes
diversas, ambas são tratadas de forma indistinta nos exames com objetivo de
explicar as bases estruturantes do sistema que permite ao ser humano pensar.
A síntese de memórias que resulta de sensações
diz respeito à parte em que o sistema utiliza impressões feitas pelos fenômenos
no organismo como matéria prima do sistema racional. Já as sínteses produzidas a partir das memórias
é a parte do sistema de inteligência em que as ideias são produzidas apenas estabelecendo
relações diretamente na razão. Com isso, as ideias deixam de ser
representativas das impressões produzidas pela matéria dos fenômenos no
organismo e passam a representar as sínteses que foram produzidas por meio das relações
entre sínteses de matérias e suas diferentes formas, emanadas do universo
fenomênico. Nesse caso, as ideias não estão associadas a memórias de sensação,
mas a novas sínteses produzidas relacionando essas memórias.
Tudo no universo está sempre em transformação,
como registrado, com perplexidade, desde Heráclito. Nunca algo é sempre o mesmo
quando tomado em consideração em momentos diferentes. No plano da realidade
sensível, o universo é permanente mutação objetiva em relação à forma. Assim, a
matéria do conhecimento, quando examinada pelo homem a partir das suas fontes[13],
sempre se apresenta de diferentes formas, peculiares, únicas em relação a
qualquer outra que possa ser tomada para exame pelos mecanismos analíticos do organismo,
de maneira a não ser possível tê-las, enquanto matéria, como sendo sempre a
mesma[14].
A função da razão, então, nesse universo que
se apresenta por meio de diferentes formas, inicialmente caóticas por não
estarem relacionadas, é a de encontrar as referências que permitem colocá-lo em
ordem, de modo a viabilizar o estabelecimento de relações no bojo dessas contínuas
e permanentes alterações que ocorrem nas impressões produzidas no homem (parte sensível),
pelo universo fenomênico (todo em movimento).
É nesse contexto de processos naturais que se
destaca o papel da inteligência. Nos organismos ele principia como potência
funcional e posteriormente desenvolve-se por adequação ao ambiente da natureza
e por meio das instituições produzidas pela cultura. Mas, o que importa, por enquanto,
é destacar que a inteligência, antes de mais nada, é sistema relacional em que uma
parte (a mais importante) é voltada para as sínteses das memórias produzidas naturalmente
pelo organismo por meio dos mecanismos analíticos[15]
(funcionais) e, outra, cultural, em que a razão produz novas memórias apenas estabelecendo
sínteses de relações entre as sínteses funcionais[16].
Como essas sínteses[17] constituem
a matéria prima do sistema de racionalidade, de maneira absolutamente singela,
como ponto de partida aos demais exames que serão feitos a seguir, parte-se,
neste estudo, do pressuposto de que pensar é estabelecer relações e de que ser
racional é dominar essa capacidade (ou submeter-se aos sistemas culturais,
sujeitando-se aos sistemas criados a partir disso).
Inteligência funcional e razão civilizada
Inteligência funcional e razão civilizada
Há dois modos totalmente distintos para a
constituição da razão. Um, no qual o sistema racional é orientado pelas
relações diretas com os sentidos[18],
por dados oriundos do universo fenomênico, impressos no organismo por meio das
sensações e, outro, em que o sistema é anterior ao indivíduo, sendo produzido no
âmbito das sociedades, fora do organismo.
No primeiro modo, o sistema decorre de uma
relação de adequação funcional, ou seja, a razão resulta das impressões
produzidas pelo mundo da natureza que se impõe a ela compulsoriamente. No segundo,
a razão é submetida a um sistema de relações produzidas por meio da cultura que
antecede ao indivíduo e lhe é imposta pelas instituições sociais, que tem na
educação seu instrumento mais eficiente.
Embora o sistema de inteligência sempre principie
por adequação ao mundo natural e, conquanto esse modo seja, de longe, muito,
mas muito mais importante sob o ponto de vista dos meios que constituem
organicamente o indivíduo[19],
é o sistema de submissão que prevalece nas sociedades sujeitas aos processos
constitutivos da razão civilizada.
É por isso que a linguagem, especialmente a
falada e a escrita, ganha extrema relevância para o desenvolvimento do processo
civilizatório, pois é ela a responsável pela produção das matrizes racionais utilizadas
nas sínteses de relações entre o organismo e o mundo cultural e é ela que permite
ao homem separar-se da natureza, da espiritualidade, da ética e dos sentidos,
para se inserir no ambiente das ideias, da cultura, das ideologias e da moral.
Eis aí, então, as considerações a serem
levadas em conta para o exame do próximo tópico com a finalidade de entender o
papel das expressões linguísticas nesse sistema de razão civilizada.
Universo fenomênico e facticidade
Universo fenomênico e facticidade
O universo, ou a
natureza fenomênica, enquanto tal, é algo que, sob o ponto de vista da
objetividade, simplesmente existe. Simples assim. Algo que há. E é nele, ou
como parte dele (também como objetividade fenomênica) que o homem se reconhece como
ser que sente e que pensa para, a seguir, e com isso, produzir uma série de
relações ao se discernir pensando nesse ambiente do qual faz parte. É o
universo como todo e o homem como parte. Esse é o ponto de partida do exame
desse tema e não se deve levar em consideração nada além dessa simplificação;
de tomar o universo como o todo que há e o homem como parte que é.
O universo, como
todo, imprime matérias no homem, como parte. Ambos se relacionam por meio das
impressões que as matérias (do universo) produzem no homem (que é parte) que as
sintetiza de modo a engendrar interações entre totalidade e parte a serem
utilizadas nos processos responsáveis pela constituição do sistema racional.
Como já
esclarecido em estudos anteriores, as matérias oriundas da totalidade
distinguem-se, entre si, por possuírem diferentes formas. Por isso, a matéria do
todo (que há), ao ser impressa na parte (que é), sintetiza os dados
no organismo para serem posteriormente relacionados pelo sistema de
inteligência, na produção das memórias constitutivas do sistema racional.
Partindo-se dessa
noção, ou seja, do simples reconhecimento de que o universo somente existe para
a razão porque produz sínteses no organismo por meio das sensações, é possível seguir
adiante no exame dos processos constitutivos da racionalidade, para verificar como
são produzidas as referências utilizadas pela razão para relacionar a parcela que
efetivamente é impressa no organismo pela sensações[20],
daquilo que ela mesma produz, de forma autônoma, por conta da cultura.
Posto em
evidência os diferentes âmbitos relacionais utilizados pelo homem ao
reconhecer-se ente e concretude e, posto também em evidência de que sensações e
ideias dizem respeito a âmbitos distintos do sistema de inteligência[21], é
necessário indagar como o ser humano organiza as referências utilizadas para
pôr em ordem o universo que o rodeia e, também, as noções que ele utiliza nas suas
interações sociais, políticas e econômicas, ou seja, de como ocorrem os
processos pelos quais, para o homem, o universo transforma-se em mundo. O mundo
da sua existência.
Conforme
constatado até aqui, o sistema de inteligência utilizado pelo homem para a
constituição da razão começa por adequação ao sistema de inteligência natural[22].
A seguir, inicia-se a fase em que as relações deixam de ser resultantes da
adjudicação da razão pelos sentidos, para dar lugar à separação entre ambos por
meio da submissão do indivíduo à educação e aos sistemas culturais.
Fato e realidade na constituição da razão
Fato e realidade na constituição da razão
Constituídos os
mecanismos orgânico-funcionais que tornam possível ao homem reconhecer-se ao estabelecer
relações e guardar memórias dessas relações sobre si e sobre o universo que o
rodeia, tem início a fase da produção do mundo que é constitutivo da razão
civilizada.
Nessa nova etapa,
a razão abandona as sínteses das impressões oriundas do mundo da natureza e o
sistema de inteligência, que principiou sob a direção dos sentidos, passa a ser
mediado unicamente pela linguagem. É a linguagem, por meio de seus diferentes
signos que permite à razão emancipar-se da natureza fenomênica para constituir,
ela mesmo, o mundo racional. E isso ocorre na exata medida em que a razão avança
na produção de relacionamentos a partir das memórias acumuladas por meio da sua
competência funcional.
Os meios
linguísticos já foram satisfatoriamente examinados pela semiologia. Por isso, parece
não haver razões, ou motivos novos, que justifiquem a retomada desse tema em um
estudo que tem unicamente a pretensão de entender como eles são utilizados enquanto
mediadores racionais nos diferentes agrupamentos humanos, em particular, nas
sociedades que os têm como matéria prima para a produção de suas ideologias.
No entanto, como entre
esses signos destaca-se a palavra, que exerce uma função intermediária entre facticidade
e realidade objetiva, as suas relações formais estão ainda a dever uma
explicação de como isso ocorre pois, embora a palavra contenha matéria visual e
sonora nos signos utilizados pela escrita e pela fala, sob o ponto de vista do
sistema racional o papel dela é de apenas produzir as relações que permitem ao
indivíduo separar-se do universo fenomênico, a ele imanente, para constituir um
mundo transcendente, somente de formas, relacionando apenas palavras, sentidos
e razão.
Por isso,
explicitar como ocorrem as relações de inteligência que tem a palavra como
mediadora entre totalidade e parte é a tarefa central em um estudo que queira
resolver essa questão que sempre – e por razões mais do que óbvias, como será
demonstrado conclusões finais deste estudo – foi deixada de lado pela filosofia
tradicional e de escola.
A palavra tanto
pode produzir relações de inteligência concordando com as memórias funcionais,
decorrentes de sínteses das impressões produzidas pela objetividade, quanto
para produzir memórias por meio de formas, de arquétipos culturais, totalmente descolados
dessas impressões e dessas sínteses.
Conforme exposto
no tópico que examinou o universo fenomênico e facticidade, a objetividade,
como tal, é algo que apenas é e, salvo na hipótese maluca trazida pelo ceticismo[23],
elevado à enésima potência de se imaginar que a realidade poderia ser apenas fruto
do sonho de um cérebro aprisionado em uma cuba de vidro, não há como deixar de
reconhecer que universo é algo que há como matéria e que o homem é algo
que é como parte e como sujeito.
Sendo o universo
um complexo de fenômenos que produz impressões no homem[24] (parte
desse universo), a primeira questão a ser distinguida no uso da linguagem é a
de que ela, quando trata de questões que dizem respeito a esse universo, deve estar
sempre referida diretamente a essas impressões, ou seja, às sínteses, que são
os dados[25]
produzidos pelo universo no organismo por meio das sensações.
Portanto, diferentemente
do que se imagina a respeito do universo enquanto objetividade, por maior que
seja o esforço humano, jamais, e em hipótese alguma, o homem conseguirá fazer
com que a razão se relacione diretamente com ele. Razão e universo precisam,
sempre, da mediação dos sentidos[26]
para estabelecer relações.
É assim que o
universo ganha o status de facticidade, pois, o fato, enquanto tal, é o
universo sob a perspectiva das impressões produzidas pelos sentidos humanos. Sempre,
e sob qualquer ponto de vista, quando se faz referência a qualquer “fato” do
universo fenomênico, diferentemente do que a filosofia de escola afirma, essa referência
diz respeito às impressões que têm origem nas relações entre sensações e universo,
e não nas relações entre razão e universo como o ceticismo trapaceiro tenta
fazer crer.
Então, fato só é
fato na perspectiva (dos sentidos) do sujeito. Abstraindo o sujeito dessa
relação, o fato, em si, desaparece, restando apenas o universo totalmente
alheio, enquanto objetividade fenomênica aos eventuais sujeitos às suas
impressões a respeito dele e de sua constituição.
Embora esteja
evidente por todas as considerações feitas até aqui, nunca é demais ressaltar
que, sob o ponto de vista das relações objetivas que ocorrem no âmbito do
universo que é dado ao homem estabelecer relações mediadas pelos sentidos, há certa
regularidade entre as matérias produzidas pelos fenômenos impressos na capacidade
humana de receber representações do mundo natural e as relações racionais
ordenadoras dessas impressões.
Assim, entre
diferentes sujeitos e sob o ponto de vista do sistema a ser constituído por
meio da razão, essas matérias parecem ser as mesmas. Com isso, o universo
fenomênico ganha a forma necessária para a mediação da linguagem, com a substituição
das relações entre ele, as memórias das impressões e a razão por relações entre
a linguagem, as memórias e a razão.
A partir de então,
é a linguagem, e não mais as impressões oriundas do universo, que passa a ser
constitutiva da facticidade responsável pela produção do mundo organizado pela razão.
Surge, assim, o mundo racional no qual a razão deixa de ser orientada pelas
impressões produzidas no organismo pela matéria dos fenômenos e por meio dos
sentidos[27],
passando para um sistema transcendente, de representações linguísticas do
universo[28],
produzidas unicamente na razão.
A contar de então
há gradativo e progressivo afastamento do homem do mundo orientado pelos
sentidos, em prol de outro ordenado apenas pela forma e representado pela
palavra.
Mundo natural e mundo cultural
Como se examinou
até aqui, as noções racionais que permitem ao organismo estabelecer as relações
constitutivas daquilo que ele toma na conta do mundo da natureza, ou do mundo “real”,
são sínteses de impressões fenomênicas produzidas em seu sistema de memórias. Essas
sínteses, que têm origem na realidade objetiva, são os dados que permitem produzir
o complexo sistema relacional utilizado pela razão.
Esses dados, ao
serem relacionados entre si pelo sistema de inteligência, produzem novas
sínteses, as quais passam a compor novas memórias que, com a mediação da
linguagem, serão tomadas na conta da facticidade em representação da natureza
objetiva. A natureza, nesse contexto, só existe para a razão como memórias de relações
entre sensações, pois são as sensações, e não a razão, que recebem informações
a respeito do mundo natural. A razão, como tal, só existe como sínteses das
memórias das sensações[29] (ou
como sínteses de relações entre essas memórias).
A partir disso,
não é mais a matéria oriunda do universo fenomênico que constitui o mundo da
facticidade. A facticidade, que principiou mediada pelas sensações[30] e
pela ordenação das relações entre organismo e universo, passa ter a mediação da
linguagem. Com isso, a linguagem assume o papel que, sob o ponto de vista da
objetividade, é do universo fenomênico na constituição do sistema que está na
base do mundo racional.
Portanto, entre
qualquer evento que tenha origem na natureza fenomênica e o homem, há sempre a
mediação das sensações, sem as quais dado algum que tenha relação com a
objetividade têm relevância para o sistema de racionalidade. Por isso, é mais
do que evidente que o mundo fenomênico, sob o ponto de vista do tempo, é sempre
antecedente ao da racionalidade, estando coberto de razões Immanuel Kant ao
constatar que “no tempo, pois, nenhum dos
nossos conhecimentos precede a experiência, e todos começam por ela”[31].
Com a constatação
de que entre a razão e o universo há sempre a mediação das sínteses produzidas
pelo organismo por meio das sensações, o próximo problema a ser enfrentado será
o de entender melhor como essas “experiências”[32]
são utilizadas na produção do sistema que as toma como matéria das relações como
representação do mundo natural, pois é nesse contexto que o sistema de
inteligência passa à mediação da linguagem para produzir os signos que substituem
as sínteses das impressões oriundas do universo sensível, pela palavra[33].
Feitas essas
considerações, é possível concluir, sem qualquer margem a dúvidas, que, sob o
ponto de vista racional, a realidade só é realidade na perspectiva do sujeito.
É ele quem dá facticidade à realidade ao relacioná-la ao mundo natural por meio
dos sentidos ou, então, à razão por meio da palavra. No primeiro caso, o universo
fenomênico produz[34]
as impressões que o relacionam à razão; no segundo, é a linguagem que produz as
impressões relacionando palavra[35] e
razão.
É por isso que, no
sistema de inteligência racional, a palavra assume o papel de mediadora entre o
sujeito e o mundo natural, pois ela tem a função de substituir as sínteses de
impressões produzidas no organismo, por meio dos sentidos, por sínteses de relações
entre palavras, sentidos e razão. Com o tempo e a repetição desses processos, a
palavra assume integralmente o papel de produzir as sínteses utilizadas pela razão
para a produção do mundo em que vive o homem. É por isso que qualquer pessoa,
por maior que seja o esforço, tem imensa dificuldade de distinguir, no âmbito
da linguagem, quando uma palavra trata de algo que está referido unicamente às
ideias[36],
de quando ela expressa a noção de sínteses de impressões produzidas pelas matérias
do universo fenomênico no âmbito das sensações.
Palavra e razão civilizada
Palavra e razão civilizada
Apresentadas todas
as questões que precisam ser entendidas sobre as relações responsáveis pela
ordenação da razão civilizada, para finalizar, é preciso, ainda, entender o
papel da palavra em um sistema de inteligência que a tem como mediadora entre a
razão e o mundo produzido por meio da cultura.
Os dados expostos
até aqui sobre o funcionamento do sistema utilizado pelo homem para pensar a
respeito de si mesmo e sobre o mundo que o cerca, são mais do que suficientes
para demonstrar que, diferentemente do que se pensa, a palavra não tem condições
de fazer qualquer mediação direta entre razão e realidade objetiva. Entre a
razão e a objetividade é sempre necessária a mediação dos sentidos. Sem as
sínteses orgânicas produzidas pelos sentidos, a palavra, em si, perde a função
significante no âmbito da realidade natural. Não passa de uma mera expressão
sonora, de um fato, sem função, sem vínculo ou relação alguma com o sistema
utilizado pelo homem para produzir as sínteses representativas do ambiente de
facticidade que lhe permite ordenar o mundo cultural.
No entanto, o
desenvolvimento do sistema de inteligência utilizado pelo homem para fazer a
transição entre o mundo da natureza e o mundo produzido pela cultura, que o tornou
civilizado, fez com que os signos linguísticos passassem a ocupar a função pertencente
à objetividade fenomênica. Com isso, a matéria dos sentidos que, no âmbito da
natureza, era fornecida por meio de impressões[37],
com a mediação da palavra, passou a ser produzida por meio de sínteses
diretamente pela razão.
A partir desse
ponto, a razão ganha independência e autonomia para separar-se da natureza
fenomênica e passar, ela mesma, a produzir os sentidos do mundo civilizado ao relacionar
memórias das impressões com palavras. Com isso, o sistema racional transcende o
mundo da natureza e faz com que a existência humana se emancipe do mundo
natural[38].
A palavra, nesse
contexto, constitui o homem, ordena o universo, faz o seu mundo e também a
realidade tomada em conta por sua psique.
Considerações finais
Considerações finais
Como foi possível
constatar neste estudo, o sistema de inteligência racional desenvolve-se
progressivamente, por meio de ciclos ou fases, cujo marco inicial dá-se na
fecundação[39].
Nesse momento começam a ser constituídos os processos que são utilizados pelo
organismo para relacionar sínteses de impressões produzidas por meio de
sensações, pela natureza fenomênica; matéria prima do sistema racional.
Também parece ter
ficado evidente, nas considerações feitas até aqui, que, no tempo, essas
sínteses, que são memórias de sensações, antecedem a razão. E, também, que é
absolutamente impossível ao homem tornar-se racional sem o auxílio dos
sentidos, instrumento analítico que medeia a razão e a natureza objetiva.
Igualmente, há de
ser reconhecido que o “mundo” tomado em consideração pelo homem, para pensar
sobre si e sobre a realidade que o cerca, não é um dado natural do universo
fenomênico, mas algo produzido pela razão a partir das sínteses das memórias
impressas no seu sistema analítico por meio das suas sensações.
Por fim, acredita-se
ter também ficado absolutamente esclarecido, neste texto, que ao se tomar os
meios utilizados pela racionalidade como objeto de exame, é possível constatar
que a palavra é o instrumento produzido pelos sistemas culturais com a
finalidade de substituir a natureza fenomênica no papel de dar sentidos à razão.
Com isso, pode-se
perceber que a palavra é constituinte da facticidade e produtora do mundo cultural
em que vive o homem. Muito embora possa haver uma série de questões a serem
examinadas ainda e por imaginar que este estudo pode contribuir para o
entendimento do trágico fenômeno cultural das “fake news”, parece relevante a publicação deste texto antes mesmo
de tratar do tema relativo à matéria e à forma nos signos linguísticos. Essa
temática é de suma importância, pois permite entender, de maneira mais clara, as
causas do enlouquecimento coletivo das sociedades guiadas unicamente pela
palavra.
Com estas
considerações, acredita-se ter sido possível demonstrar que a palavra, ao
substituir o universo no papel de dar sentidos à razão, tanto pode servir para
organizar, pôr em ordem e orientar, como para iludir, trapacear e enganar o
homem. Assim, este estudo, ao cumprir sua função de entender como funcionam os
processos constitutivos da razão humana e, ainda, de deixar esclarecidas as
relações formais que se estabelecem por meio da linguagem, acredita ter posto
em evidência que a palavra, enquanto tal, tanto pode servir para libertar a
razão ao colocá-la em sintonia com o universo dos sentidos do homem, como estar
a serviço de toda espécie de trapaceiros para enfeitiçar, depois enlouquecer e,
por fim, dominar totalmente o ser humano.
[1]Nihil obstat
[2] O papel da filosofia de escola sempre esteve focado
no ceticismo, trapaça largamente utilizada pela filosofia para convencer o
homem de sua incapacidade de pensar por conta própria. O saber, nesse sistema,
é sempre produto da revelação do outro.
[3] Naturalmente que esses processos têm origem em
organismos antecedentes, mas como o propósito deste ensaio é de apenas explicitar
a parcela responsável pela inteligência racional, não a origem da vida,
parte-se da fecundação como fundante do organismo.
[4] As religiões praticamente monopolizaram o exame desse
tema.
[5] Ou proveito de seus fins.
[6] Por essa razão, a ciência tradicional parte do
pressuposto que o seu papel estaria limitado à descoberta das “leis” naturais
que regem esse universo.
[7] Por mais óbvio que seja, é necessário ficar
absolutamente esclarecido que desde a fase do zigoto o organismo está
permanentemente em processos de reprodução celular, que somente se encerrará
com a morte.
[8] Ou da cissiparidade,
esporulação, brotamento, gemulação, etc.
[9] Embora essa questão já tenha sido muito bem tratada
em outro estudo, vou arriscar, ao abrir mão do rigor científico, na tentativa de
simplificação desse importante tema que precisa ser entendido para a abordagem
do tema central deste estudo.
[10] Os processos utilizados durante a constituição do
sistema de inteligência no indivíduo o faz imaginar que consegue pensar
objetos. Ledo engano, pois pensamentos estão sempre voltados para as sensações
(impressões) que os objetos produzem na capacidade do organismo de produzir
sínteses (memórias) representativas dos objetos do mundo natural.
[11] É interessante notar que algumas dessas relações
antecedem ao organismo e são recebidas por legado entre as espécies, como as
instruções para fazer ninhos, entre os pássaros, por exemplo.
[12] Memórias de impressões e de relações entre memórias,
ou seja, memória de memórias.
[13] Que são as impressões produzidas pelos fenômenos.
[14] Um fenômeno produzido no âmbito da objetividade pode
ser impresso no organismo pela audição e também pela visão, olfato, tato e
gosto. E isso só ocorre em razão das diferentes formas do fenômeno. No grupo de
estudos sobre inteligência Sebo Café, essa questão foi exaustivamente examinada
no curso de mais de dois anos. Iniciamos constatando que não há como assegurar
existirem dois elementos na natureza que possam ser rigorosamente idênticos. Só
o fato de ocuparem diferentes posições no espaço e estarem sob influência de
forças ou agentes distintos faz com que cada elemento, embora se submetendo às
mesmas reações a ações, tomado em consideração sob o ponto de vista da sua
forma, seja único no âmbito do universo.
[15] Pelos meios exógenos da visão, audição, tato, olfato
e gosto e dois comandos endógenos, compulsórios, um coordenando a reprodução no
bojo das estruturas orgânicas e outro adaptando o ser para sobreviver sempre.
[16] Uma síntese de memória de segundo nível: memória de
relações entre memórias.
[17] Por isso que quando essa relação falha, ou não é
produzida de forma adequada, gera o trauma, que é uma disfunção entre as
sínteses e a racionalidade.
[18]Esse é o verdadeiro sentido da noção de
desenvolvimento espiritual nos agrupamentos que dominam essa técnica de
aperfeiçoamento humano.
[19] Aqui reside uma questão deveras interessante, mal
compreendida (ou ocultada) pela filosofia de escola sobre o real sentido da
noção de espiritualidade nas sociedades que resistem ao processo
“civilizatório”. Desenvolver a espiritualidade, para algumas sociedades
humanamente mais desenvolvidas, é buscar, ao máximo, a concordância entre o
sistema de ideias e as impressões produzidas no indivíduo em suas relações com
o mundo natural.
[20] Capacidade de receber as representações do mundo
natural por meio de impressões sensíveis.
[21] Um trata das relações entre o homem e o universo e o
outro das relações entre os sentidos e a razão.
[22] Inconsciente.
[23] Nunca esquecendo que a objeção ceticista é uma
trapaça, tremenda e desonesta trapaça, largamente utilizada na filosofia de
escola para convencer o homem de sua inata ignorância e da necessidade de
aceitar a “revelação”.
[24] O universo sensível se apresenta ao homem sempre e
unicamente por meio das sensações. Ou seja, se o homem fosse privado da
audição, da visão, do tato, do gosto e do olfato, o universo todo, para o seu
sistema racional, não existiria.
[25] Sínteses.
[26] Em verdade, das impressões produzidas pelo universo
no organismo,
[27] Que compõem as verdades de cada pessoa.
[28] Por meio da “ciência” (ideias e crenças sobre a
natureza).
[29] É claro que como o desenvolvimento do sistema
relacional, a razão adquire a capacidade de produzir um sistema metafísico puro,
como a matemática, mas isso só é possível depois de constituída a razão mediada
pelos sentidos.
[30] Penso ter exposto, de forma satisfatória, a distinção
entre as representações das verdades e das crenças em um sistema de
racionalidade.
[31] Não obstante a genialidade do filósofo que produziu o
método utilizado pelo iluminismo para divulgar os avanços nas ciências de sua
época, os compromissos de Kant com a filosofia de escola não lhe permitiram ir
adiante no exame da natureza dos juízos de modo a enfrentar – e resolver
definitivamente – o problema da trapaça ceticista, ao distinguir conhecimento e
ciência na constituição da racionalidade humana.
[32] Sínteses ou memórias.
[33] Embora sob o ponto de vista de seus signos a palavra possa
conter matéria, sob o ponto de vista do indivíduo ela estabelece apenas uma
relação transcendente.
[34] Por meio dos sentidos.
[35] Nesse caso, a palavra assume o papel do universo na
constituição do sistema racional.
[36] Nos estudos da matemática, isso é facilmente
percebido. A introdução de objetos no ensino da matemática destrói
completamente a capacidade de o indivíduo entender o sistema de relacionamentos
que esse sistema de ideias (puras) utiliza.
[37] Que em verdade são memórias produzidas pelos
sentidos.
[38] Isso tudo faz o homem escravo de um sistema de ideias
que o aprisiona de tal forma, com tanta força e potência, que ele jamais
conseguirá se libertar de algo que foi ele mesmo quem produziu.
[39] Evidentemente que, se for examinado, mais detidamente
essa questão, que não faz parte dos propósitos do estudo, é evidente que o
sistema de inteligência remonta ao surgimento da vida e que há, nos organismos,
instruções que são legadas nas espécies para as gerações que se sucedem, como
instruções de como produzir ninhos entre as aves, caçar entre os animais
selvagens, etc, que independe de aprendizado racional.