sábado, 4 de abril de 2020

Palavra e razão civilizada

Palavra e razão civilizada
(Investigações sobre ciência e linguagem)



“No princípio, era o verbo” (João)
                 
                  Considerações preliminares 

Este texto é o terceiro de três estudos sobre inteligência. O primeiro, “O ambiente sintético da ciência”, publicado em 2008, pôs em evidência as relações orgânicas responsáveis pelo sistema de inteligência funcional nos seres vivos; O segundo, “Ciência e conhecimento no sistema de inteligência humano”, escrito em 2017, examinou as relações formais - entre matérias - que constituem o sistema de inteligência instrumental do homem, e; este último, encerrando o ciclo, analisa esses dois sistemas em ação, produzindo a cultura civilizada nas sociedades humanas.
Entender como funcionam os processos constitutivos da razão humana e de como são produzidas as noções de certezas, de verdades e de crenças utilizadas pelas sociedades civilizadas é o ponto de partida deste ensaio, que vem sendo gestado no curso de muitos anos de investigações, no grupo de estudos sobre Inteligência Sebo Café.
Não tem sido uma tarefa simples. Tampouco é um trabalho solitário. Essa missão vem sucessivamente sendo realizada por diferentes pessoas no curso dos últimos séculos. Embora, ainda hoje, questões complexas não tenham sido resolvidas, parece ser lícito acreditar que, em algum momento, por mais difícil que possa parecer, ao menos o exame das competências funcionais que permitem a existência da razão civilizada possa ser dado por encerrado.
A empreitada é extremamente difícil, uma vez que, para expor as ideias que põem em ordem as questões a serem entendidas no estudo, é preciso, antes de tudo, encontrar argumentos para demonstrar a necessidade de o pensador da atualidade livrar-se de avassaladores impedimentos ideológicos, introduzidos em sua racionalidade, de forma sutil, pelas instituições que adjudicaram completamente o exame desses temas no curso dos últimos séculos.
Portanto, para cumprir com o objetivo de examinar as competências funcionais da racionalidade humana, é necessário pôr em evidência os processos utilizados pela razão para constituir o sistema de relações transcendentes, submetendo o imanente. Essa é a questão central a ser tratada neste ensaio. Sem entender isso, nada mais poderá ser compreendido.
Aos que se iniciam nesses estudos fica aqui, mais uma vez, o apelo sobre a necessidade de partir do exame dos temas já resolvidos nos dois primeiros escritos. Neles, foram explicitadas as relações que se estabelecem entre o organismo e o mundo natural em que ele está inserido. Depois, as relações que o organismo produz a partir do desenvolvimento dessa competência. Somente entendendo como esses dois momentos são constituídos, é possível seguir em frente e romper com as amarras ideológicas introduzidas na razão pela filosofia tradicional que, por ter estado sempre sob contínua vigilância e tutela de sistemas produzidos no bojo da escolástica[1], não permitiu que o homem resolvesse questões elementares a respeito de sua capacidade racional[2].
Utilizado esse método como referência, os elos produzidos no curso dos séculos para manter presos espíritos que deveriam ser naturalmente livres, haverão de romper-se. E, quando isso ocorrer, o novo sistema constituir-se-á por conta própria.
Por óbvio que isso não é fácil, pois o gozo proporcionado pela autossubmissão ao maniqueísmo da revelação é muito mais cômodo e atrativo do que o reconhecimento de somente ser possível a qualquer pessoa descobrir o universo, na mesma e na exata medida em que descobrir a si mesma.

 Organismo e inteligência funcional
Todo o organismo é dotado de aptidões naturais que o permite entender o meio em que vive, com a finalidade de desenvolver-se e de relacionar-se com outros organismos, cumprindo ciclos naturais que têm início na fecundação e se encerram com a morte[3].
As fontes primárias que põem esse sistema em funcionamento ainda estão fora dos domínios da ciência. Por isso, para tratar desse tema, é preciso partir da constatação de que eventos extraordinários ocorrem na natureza ao dotá-la com instruções para associar diferentes elementos, de maneira a tornar possível a produção das bases embriogênicas da vida no planeta.
De onde surgem essas instruções, como elas são produzidas e as razões pelas quais elas ocorrem, ainda não foram suficientemente entendidas pela ciência de maneira a ser explicado em um sistema de ideias. No entanto, como o homem sempre buscou saber sobre as suas origens - e também sobre os fins últimos de sua existência - diferentes respostas[4] são dadas, por diferentes instituições, na tentativa de explicar[5] os fundamentos desse plexo fenomênico que rege os movimentos, a absorção e a fusão entre matérias, no bojo de eventos extraordinários que ocorrem em um universo que se apresenta aos sentidos do homem sempre em mutação[6]e em contínuos e sucessivos processos integrando partículas e galáxias.
No curso desses fenômenos, significativos processos distinguiram organismos dotando-os com competências particulares, que serão examinadas no presente ensaio com o objetivo de investigar como foi possível ao homem produzir e desenvolver um sistema de racionalidade instrumental, constitutivo das bases sobre as quais está fundada a razão civilizada.
Para cumprir esse objetivo, nada é mais relevante do que explicar, com clareza, como é possível ao homem pensar a respeito do mundo que o cerca, tendo-se presente de que, para isso, ele dispõe apenas da mediação do olfato, do tato, do gosto, da audição e da visão, todos utilizados no bojo de um sistema programado por algoritmos naturais que lhe impõem a obediência a duas instruções que estão na base da sua existência: manter-se sempre vivo e reproduzir-se[7] permanentemente.
Qualquer organismo, por mais elementar que seja, distingue-se no mundo natural, pelo fato de ser dotado de um sistema com instruções suficientes que o permite adaptar-se e reproduzir-se para manter-se sempre vivo, até que cumpra totalmente o ciclo que inicia na fecundação[8] e encerra com a morte.
De que outra forma seria possível explicar a possibilidade da cissiparidade, da esporulação, do brotamento e da gemulação, assim como a fecundação (interna, externa, cruzada, etc) na reprodução, que não seja a existência de um sistema de inteligência coordenando tudo isso? Igualmente, como seria possível explicar a mitose (interfase, prófase, metáfase, anáfase e telófase) e meiose celular, senão pela constatação da existência de um complexo sistema natural que informa ao organismo os elementos que são necessários (e de como eles devem ser organizados) para a reprodução endógena de suas células e, no curso desse processo, tome iniciativas para tornar possível sua reprodução exógena, de forma a perpetuar-se enquanto espécie no planeta?
Portanto, a primeira questão a ser dada por resolvida neste estudo é a de que os organismos só são organismos pelo fato de estarem sob a condução de processos naturais que os distinguem entre os demais elementos do mundo fenomênico por serem dotados de um inato sistema de inteligência.

Inteligência Racional[9]
A racionalidade é a parte constitutiva e ordenadora do universo humano que está na base dos sistemas culturais. Ser racional é ter o mundo ordenado pela razão. É ter desenvolvido um sistema de inteligência do mundo da natureza. No homem, a inteligência racional é constituída tendo uma parte diretamente relacionada à inteligência funcional, que é inata, por meio dos sentidos, e, outra, cultural, produzida no curso do desenvolvimento da aptidão natural de guardar memórias e de estabelecer relações entre matérias e forma de fenômenos impressos na sua capacidade de receber representações[10] do mundo da natureza, por meio de sensações.
Enquanto a inteligência funcional é orgânica e inata, a inteligência racional decorre da cultura e é produzida pela razão. Essa questão é de extrema relevância. Distinguir a inteligência funcional[11] da inteligência racional é a atitude metodológica que põe em ordem as primeiras questões que precisam ser compreendidas neste estudo. É essa distinção que permite entender, e explicar, até onde é possível examinar a racionalidade sem levar em consideração as relações que ela estabelece, de modo direto, com a objetividade pois, se em todos os organismos há um sistema que age coordenado pelos processos que permitem a existência da vida, esses processos precisam ser considerados ao verificar-se como eles são utilizados no desenvolvimento de um sistema que se emancipa deles e passa a atuar orientado apenas por memórias[12]!
Esse é o principal motivo pelo qual é preciso distinguir, para entender, as razões da necessidade de diferenciar as sínteses das memórias que resultam das sensações, das sínteses que são produzidas a partir das memórias das sensações. Embora essas duas espécies de sínteses sejam constitutivas do sistema racional que o  homem produz e utiliza no curso de sua existência para guiar a razão, e tenham fontes diversas, ambas são tratadas de forma indistinta nos exames com objetivo de explicar as bases estruturantes do sistema que permite ao ser humano pensar.
A síntese de memórias que resulta de sensações diz respeito à parte em que o sistema utiliza impressões feitas pelos fenômenos no organismo como matéria prima do sistema racional.  Já as sínteses produzidas a partir das memórias é a parte do sistema de inteligência em que as ideias são produzidas apenas estabelecendo relações diretamente na razão. Com isso, as ideias deixam de ser representativas das impressões produzidas pela matéria dos fenômenos no organismo e passam a representar as sínteses que foram produzidas por meio das relações entre sínteses de matérias e suas diferentes formas, emanadas do universo fenomênico. Nesse caso, as ideias não estão associadas a memórias de sensação, mas a novas sínteses produzidas relacionando essas memórias.
Tudo no universo está sempre em transformação, como registrado, com perplexidade, desde Heráclito. Nunca algo é sempre o mesmo quando tomado em consideração em momentos diferentes. No plano da realidade sensível, o universo é permanente mutação objetiva em relação à forma. Assim, a matéria do conhecimento, quando examinada pelo homem a partir das suas fontes[13], sempre se apresenta de diferentes formas, peculiares, únicas em relação a qualquer outra que possa ser tomada para exame pelos mecanismos analíticos do organismo, de maneira a não ser possível tê-las, enquanto matéria, como sendo sempre a mesma[14].
A função da razão, então, nesse universo que se apresenta por meio de diferentes formas, inicialmente caóticas por não estarem relacionadas, é a de encontrar as referências que permitem colocá-lo em ordem, de modo a viabilizar o estabelecimento de relações no bojo dessas contínuas e permanentes alterações que ocorrem nas impressões produzidas no homem (parte sensível), pelo universo fenomênico (todo em movimento).
É nesse contexto de processos naturais que se destaca o papel da inteligência. Nos organismos ele principia como potência funcional e posteriormente desenvolve-se por adequação ao ambiente da natureza e por meio das instituições produzidas pela cultura. Mas, o que importa, por enquanto, é destacar que a inteligência, antes de mais nada, é sistema relacional em que uma parte (a mais importante) é voltada para as sínteses das memórias produzidas naturalmente pelo organismo por meio dos mecanismos analíticos[15] (funcionais) e, outra, cultural, em que a razão produz novas memórias apenas estabelecendo sínteses de relações entre as sínteses funcionais[16].
Como essas sínteses[17] constituem a matéria prima do sistema de racionalidade, de maneira absolutamente singela, como ponto de partida aos demais exames que serão feitos a seguir, parte-se, neste estudo, do pressuposto de que pensar é estabelecer relações e de que ser racional é dominar essa capacidade (ou submeter-se aos sistemas culturais, sujeitando-se aos sistemas criados a partir disso).

Inteligência funcional e razão civilizada
Há dois modos totalmente distintos para a constituição da razão. Um, no qual o sistema racional é orientado pelas relações diretas com os sentidos[18], por dados oriundos do universo fenomênico, impressos no organismo por meio das sensações e, outro, em que o sistema é anterior ao indivíduo, sendo produzido no âmbito das sociedades, fora do organismo.
No primeiro modo, o sistema decorre de uma relação de adequação funcional, ou seja, a razão resulta das impressões produzidas pelo mundo da natureza que se impõe a ela compulsoriamente. No segundo, a razão é submetida a um sistema de relações produzidas por meio da cultura que antecede ao indivíduo e lhe é imposta pelas instituições sociais, que tem na educação seu instrumento mais eficiente.
Embora o sistema de inteligência sempre principie por adequação ao mundo natural e, conquanto esse modo seja, de longe, muito, mas muito mais importante sob o ponto de vista dos meios que constituem organicamente o indivíduo[19], é o sistema de submissão que prevalece nas sociedades sujeitas aos processos constitutivos da razão civilizada.
É por isso que a linguagem, especialmente a falada e a escrita, ganha extrema relevância para o desenvolvimento do processo civilizatório, pois é ela a responsável pela produção das matrizes racionais utilizadas nas sínteses de relações entre o organismo e o mundo cultural e é ela que permite ao homem separar-se da natureza, da espiritualidade, da ética e dos sentidos, para se inserir no ambiente das ideias, da cultura, das ideologias e da moral.
Eis aí, então, as considerações a serem levadas em conta para o exame do próximo tópico com a finalidade de entender o papel das expressões linguísticas nesse sistema de razão civilizada.

Universo fenomênico e facticidade
O universo, ou a natureza fenomênica, enquanto tal, é algo que, sob o ponto de vista da objetividade, simplesmente existe. Simples assim. Algo que há. E é nele, ou como parte dele (também como objetividade fenomênica) que o homem se reconhece como ser que sente e que pensa para, a seguir, e com isso, produzir uma série de relações ao se discernir pensando nesse ambiente do qual faz parte. É o universo como todo e o homem como parte. Esse é o ponto de partida do exame desse tema e não se deve levar em consideração nada além dessa simplificação; de tomar o universo como o todo que e o homem como parte que é.
O universo, como todo, imprime matérias no homem, como parte. Ambos se relacionam por meio das impressões que as matérias (do universo) produzem no homem (que é parte) que as sintetiza de modo a engendrar interações entre totalidade e parte a serem utilizadas nos processos responsáveis pela constituição do sistema racional.
Como já esclarecido em estudos anteriores, as matérias oriundas da totalidade distinguem-se, entre si, por possuírem diferentes formas. Por isso, a matéria do todo (que ), ao ser impressa na parte (que é), sintetiza os dados no organismo para serem posteriormente relacionados pelo sistema de inteligência, na produção das memórias constitutivas do sistema racional.
Partindo-se dessa noção, ou seja, do simples reconhecimento de que o universo somente existe para a razão porque produz sínteses no organismo por meio das sensações, é possível seguir adiante no exame dos processos constitutivos da racionalidade, para verificar como são produzidas as referências utilizadas pela razão para relacionar a parcela que efetivamente é impressa no organismo pela sensações[20], daquilo que ela mesma produz, de forma autônoma, por conta da cultura.
Posto em evidência os diferentes âmbitos relacionais utilizados pelo homem ao reconhecer-se ente e concretude e, posto também em evidência de que sensações e ideias dizem respeito a âmbitos distintos do sistema de inteligência[21], é necessário indagar como o ser humano organiza as referências utilizadas para pôr em ordem o universo que o rodeia e, também, as noções que ele utiliza nas suas interações sociais, políticas e econômicas, ou seja, de como ocorrem os processos pelos quais, para o homem, o universo transforma-se em mundo. O mundo da sua existência.
Conforme constatado até aqui, o sistema de inteligência utilizado pelo homem para a constituição da razão começa por adequação ao sistema de inteligência natural[22]. A seguir, inicia-se a fase em que as relações deixam de ser resultantes da adjudicação da razão pelos sentidos, para dar lugar à separação entre ambos por meio da submissão do indivíduo à educação e aos sistemas culturais.

Fato e realidade na constituição da razão
Constituídos os mecanismos orgânico-funcionais que tornam possível ao homem reconhecer-se ao estabelecer relações e guardar memórias dessas relações sobre si e sobre o universo que o rodeia, tem início a fase da produção do mundo que é constitutivo da razão civilizada.
Nessa nova etapa, a razão abandona as sínteses das impressões oriundas do mundo da natureza e o sistema de inteligência, que principiou sob a direção dos sentidos, passa a ser mediado unicamente pela linguagem. É a linguagem, por meio de seus diferentes signos que permite à razão emancipar-se da natureza fenomênica para constituir, ela mesmo, o mundo racional. E isso ocorre na exata medida em que a razão avança na produção de relacionamentos a partir das memórias acumuladas por meio da sua competência funcional.
Os meios linguísticos já foram satisfatoriamente examinados pela semiologia. Por isso, parece não haver razões, ou motivos novos, que justifiquem a retomada desse tema em um estudo que tem unicamente a pretensão de entender como eles são utilizados enquanto mediadores racionais nos diferentes agrupamentos humanos, em particular, nas sociedades que os têm como matéria prima para a produção de suas ideologias.  
No entanto, como entre esses signos destaca-se a palavra, que exerce uma função intermediária entre facticidade e realidade objetiva, as suas relações formais estão ainda a dever uma explicação de como isso ocorre pois, embora a palavra contenha matéria visual e sonora nos signos utilizados pela escrita e pela fala, sob o ponto de vista do sistema racional o papel dela é de apenas produzir as relações que permitem ao indivíduo separar-se do universo fenomênico, a ele imanente, para constituir um mundo transcendente, somente de formas, relacionando apenas palavras, sentidos e razão.
Por isso, explicitar como ocorrem as relações de inteligência que tem a palavra como mediadora entre totalidade e parte é a tarefa central em um estudo que queira resolver essa questão que sempre – e por razões mais do que óbvias, como será demonstrado conclusões finais deste estudo – foi deixada de lado pela filosofia tradicional e de escola.
A palavra tanto pode produzir relações de inteligência concordando com as memórias funcionais, decorrentes de sínteses das impressões produzidas pela objetividade, quanto para produzir memórias por meio de formas, de arquétipos culturais, totalmente descolados dessas impressões e dessas sínteses.
Conforme exposto no tópico que examinou o universo fenomênico e facticidade, a objetividade, como tal, é algo que apenas é e, salvo na hipótese maluca trazida pelo ceticismo[23], elevado à enésima potência de se imaginar que a realidade poderia ser apenas fruto do sonho de um cérebro aprisionado em uma cuba de vidro, não há como deixar de reconhecer que universo é algo que há como matéria e que o homem é algo que é como parte e como sujeito.
Sendo o universo um complexo de fenômenos que produz impressões no homem[24] (parte desse universo), a primeira questão a ser distinguida no uso da linguagem é a de que ela, quando trata de questões que dizem respeito a esse universo, deve estar sempre referida diretamente a essas impressões, ou seja, às sínteses, que são os dados[25] produzidos pelo universo no organismo por meio das sensações.
Portanto, diferentemente do que se imagina a respeito do universo enquanto objetividade, por maior que seja o esforço humano, jamais, e em hipótese alguma, o homem conseguirá fazer com que a razão se relacione diretamente com ele. Razão e universo precisam, sempre, da mediação dos sentidos[26] para estabelecer relações.
É assim que o universo ganha o status de facticidade, pois, o fato, enquanto tal, é o universo sob a perspectiva das impressões produzidas pelos sentidos humanos. Sempre, e sob qualquer ponto de vista, quando se faz referência a qualquer “fato” do universo fenomênico, diferentemente do que a filosofia de escola afirma, essa referência diz respeito às impressões que têm origem nas relações entre sensações e universo, e não nas relações entre razão e universo como o ceticismo trapaceiro tenta fazer crer.
Então, fato só é fato na perspectiva (dos sentidos) do sujeito. Abstraindo o sujeito dessa relação, o fato, em si, desaparece, restando apenas o universo totalmente alheio, enquanto objetividade fenomênica aos eventuais sujeitos às suas impressões a respeito dele e de sua constituição.
Embora esteja evidente por todas as considerações feitas até aqui, nunca é demais ressaltar que, sob o ponto de vista das relações objetivas que ocorrem no âmbito do universo que é dado ao homem estabelecer relações mediadas pelos sentidos, há certa regularidade entre as matérias produzidas pelos fenômenos impressos na capacidade humana de receber representações do mundo natural e as relações racionais ordenadoras dessas impressões.
Assim, entre diferentes sujeitos e sob o ponto de vista do sistema a ser constituído por meio da razão, essas matérias parecem ser as mesmas. Com isso, o universo fenomênico ganha a forma necessária para a mediação da linguagem, com a substituição das relações entre ele, as memórias das impressões e a razão por relações entre a linguagem, as memórias e a razão.
A partir de então, é a linguagem, e não mais as impressões oriundas do universo, que passa a ser constitutiva da facticidade responsável pela produção do mundo organizado pela razão. Surge, assim, o mundo racional no qual a razão deixa de ser orientada pelas impressões produzidas no organismo pela matéria dos fenômenos e por meio dos sentidos[27], passando para um sistema transcendente, de representações linguísticas do universo[28], produzidas unicamente na razão.
A contar de então há gradativo e progressivo afastamento do homem do mundo orientado pelos sentidos, em prol de outro ordenado apenas pela forma e representado pela palavra.

 Mundo natural e mundo cultural
Como se examinou até aqui, as noções racionais que permitem ao organismo estabelecer as relações constitutivas daquilo que ele toma na conta do mundo da natureza, ou do mundo “real”, são sínteses de impressões fenomênicas produzidas em seu sistema de memórias. Essas sínteses, que têm origem na realidade objetiva, são os dados que permitem produzir o complexo sistema relacional utilizado pela razão.
Esses dados, ao serem relacionados entre si pelo sistema de inteligência, produzem novas sínteses, as quais passam a compor novas memórias que, com a mediação da linguagem, serão tomadas na conta da facticidade em representação da natureza objetiva. A natureza, nesse contexto, só existe para a razão como memórias de relações entre sensações, pois são as sensações, e não a razão, que recebem informações a respeito do mundo natural. A razão, como tal, só existe como sínteses das memórias das sensações[29] (ou como sínteses de relações entre essas memórias).
A partir disso, não é mais a matéria oriunda do universo fenomênico que constitui o mundo da facticidade. A facticidade, que principiou mediada pelas sensações[30] e pela ordenação das relações entre organismo e universo, passa ter a mediação da linguagem. Com isso, a linguagem assume o papel que, sob o ponto de vista da objetividade, é do universo fenomênico na constituição do sistema que está na base do mundo racional.
Portanto, entre qualquer evento que tenha origem na natureza fenomênica e o homem, há sempre a mediação das sensações, sem as quais dado algum que tenha relação com a objetividade têm relevância para o sistema de racionalidade. Por isso, é mais do que evidente que o mundo fenomênico, sob o ponto de vista do tempo, é sempre antecedente ao da racionalidade, estando coberto de razões Immanuel Kant ao constatar que “no tempo, pois, nenhum dos nossos conhecimentos precede a experiência, e todos começam por ela[31].
Com a constatação de que entre a razão e o universo há sempre a mediação das sínteses produzidas pelo organismo por meio das sensações, o próximo problema a ser enfrentado será o de entender melhor como essas “experiências”[32] são utilizadas na produção do sistema que as toma como matéria das relações como representação do mundo natural, pois é nesse contexto que o sistema de inteligência passa à mediação da linguagem para produzir os signos que substituem as sínteses das impressões oriundas do universo sensível, pela palavra[33].
Feitas essas considerações, é possível concluir, sem qualquer margem a dúvidas, que, sob o ponto de vista racional, a realidade só é realidade na perspectiva do sujeito. É ele quem dá facticidade à realidade ao relacioná-la ao mundo natural por meio dos sentidos ou, então, à razão por meio da palavra. No primeiro caso, o universo fenomênico produz[34] as impressões que o relacionam à razão; no segundo, é a linguagem que produz as impressões relacionando palavra[35] e razão.
É por isso que, no sistema de inteligência racional, a palavra assume o papel de mediadora entre o sujeito e o mundo natural, pois ela tem a função de substituir as sínteses de impressões produzidas no organismo, por meio dos sentidos, por sínteses de relações entre palavras, sentidos e razão. Com o tempo e a repetição desses processos, a palavra assume integralmente o papel de produzir as sínteses utilizadas pela razão para a produção do mundo em que vive o homem. É por isso que qualquer pessoa, por maior que seja o esforço, tem imensa dificuldade de distinguir, no âmbito da linguagem, quando uma palavra trata de algo que está referido unicamente às ideias[36], de quando ela expressa a noção de sínteses de impressões produzidas pelas matérias do universo fenomênico no âmbito das sensações.

Palavra e razão civilizada
Apresentadas todas as questões que precisam ser entendidas sobre as relações responsáveis pela ordenação da razão civilizada, para finalizar, é preciso, ainda, entender o papel da palavra em um sistema de inteligência que a tem como mediadora entre a razão e o mundo produzido por meio da cultura.
Os dados expostos até aqui sobre o funcionamento do sistema utilizado pelo homem para pensar a respeito de si mesmo e sobre o mundo que o cerca, são mais do que suficientes para demonstrar que, diferentemente do que se pensa, a palavra não tem condições de fazer qualquer mediação direta entre razão e realidade objetiva. Entre a razão e a objetividade é sempre necessária a mediação dos sentidos. Sem as sínteses orgânicas produzidas pelos sentidos, a palavra, em si, perde a função significante no âmbito da realidade natural. Não passa de uma mera expressão sonora, de um fato, sem função, sem vínculo ou relação alguma com o sistema utilizado pelo homem para produzir as sínteses representativas do ambiente de facticidade que lhe permite ordenar o mundo cultural.
No entanto, o desenvolvimento do sistema de inteligência utilizado pelo homem para fazer a transição entre o mundo da natureza e o mundo produzido pela cultura, que o tornou civilizado, fez com que os signos linguísticos passassem a ocupar a função pertencente à objetividade fenomênica. Com isso, a matéria dos sentidos que, no âmbito da natureza, era fornecida por meio de impressões[37], com a mediação da palavra, passou a ser produzida por meio de sínteses diretamente pela razão.
A partir desse ponto, a razão ganha independência e autonomia para separar-se da natureza fenomênica e passar, ela mesma, a produzir os sentidos do mundo civilizado ao relacionar memórias das impressões com palavras. Com isso, o sistema racional transcende o mundo da natureza e faz com que a existência humana se emancipe do mundo natural[38].
A palavra, nesse contexto, constitui o homem, ordena o universo, faz o seu mundo e também a realidade tomada em conta por sua psique.

Considerações finais
Como foi possível constatar neste estudo, o sistema de inteligência racional desenvolve-se progressivamente, por meio de ciclos ou fases, cujo marco inicial dá-se na fecundação[39]. Nesse momento começam a ser constituídos os processos que são utilizados pelo organismo para relacionar sínteses de impressões produzidas por meio de sensações, pela natureza fenomênica; matéria prima do sistema racional.
Também parece ter ficado evidente, nas considerações feitas até aqui, que, no tempo, essas sínteses, que são memórias de sensações, antecedem a razão. E, também, que é absolutamente impossível ao homem tornar-se racional sem o auxílio dos sentidos, instrumento analítico que medeia a razão e a natureza objetiva.
Igualmente, há de ser reconhecido que o “mundo” tomado em consideração pelo homem, para pensar sobre si e sobre a realidade que o cerca, não é um dado natural do universo fenomênico, mas algo produzido pela razão a partir das sínteses das memórias impressas no seu sistema analítico por meio das suas sensações.
Por fim, acredita-se ter também ficado absolutamente esclarecido, neste texto, que ao se tomar os meios utilizados pela racionalidade como objeto de exame, é possível constatar que a palavra é o instrumento produzido pelos sistemas culturais com a finalidade de substituir a natureza fenomênica no papel de dar sentidos à razão.
Com isso, pode-se perceber que a palavra é constituinte da facticidade e produtora do mundo cultural em que vive o homem. Muito embora possa haver uma série de questões a serem examinadas ainda e por imaginar que este estudo pode contribuir para o entendimento do trágico fenômeno cultural das “fake news”, parece relevante a publicação deste texto antes mesmo de tratar do tema relativo à matéria e à forma nos signos linguísticos. Essa temática é de suma importância, pois permite entender, de maneira mais clara, as causas do enlouquecimento coletivo das sociedades guiadas unicamente pela palavra.
Com estas considerações, acredita-se ter sido possível demonstrar que a palavra, ao substituir o universo no papel de dar sentidos à razão, tanto pode servir para organizar, pôr em ordem e orientar, como para iludir, trapacear e enganar o homem. Assim, este estudo, ao cumprir sua função de entender como funcionam os processos constitutivos da razão humana e, ainda, de deixar esclarecidas as relações formais que se estabelecem por meio da linguagem, acredita ter posto em evidência que a palavra, enquanto tal, tanto pode servir para libertar a razão ao colocá-la em sintonia com o universo dos sentidos do homem, como estar a serviço de toda espécie de trapaceiros para enfeitiçar, depois enlouquecer e, por fim, dominar totalmente o ser humano.



[1]Nihil obstat
[2] O papel da filosofia de escola sempre esteve focado no ceticismo, trapaça largamente utilizada pela filosofia para convencer o homem de sua incapacidade de pensar por conta própria. O saber, nesse sistema, é sempre produto da revelação do outro.
[3] Naturalmente que esses processos têm origem em organismos antecedentes, mas como o propósito deste ensaio é de apenas explicitar a parcela responsável pela inteligência racional, não a origem da vida, parte-se da fecundação como fundante do organismo.
[4] As religiões praticamente monopolizaram o exame desse tema.
[5] Ou proveito de seus fins.
[6] Por essa razão, a ciência tradicional parte do pressuposto que o seu papel estaria limitado à descoberta das “leis” naturais que regem esse universo.
[7] Por mais óbvio que seja, é necessário ficar absolutamente esclarecido que desde a fase do zigoto o organismo está permanentemente em processos de reprodução celular, que somente se encerrará com a morte.
[8] Ou da cissiparidade, esporulação, brotamento, gemulação, etc.
[9] Embora essa questão já tenha sido muito bem tratada em outro estudo, vou arriscar, ao abrir mão do rigor científico, na tentativa de simplificação desse importante tema que precisa ser entendido para a abordagem do tema central deste estudo.
[10] Os processos utilizados durante a constituição do sistema de inteligência no indivíduo o faz imaginar que consegue pensar objetos. Ledo engano, pois pensamentos estão sempre voltados para as sensações (impressões) que os objetos produzem na capacidade do organismo de produzir sínteses (memórias) representativas dos objetos do mundo natural.
[11] É interessante notar que algumas dessas relações antecedem ao organismo e são recebidas por legado entre as espécies, como as instruções para fazer ninhos, entre os pássaros, por exemplo.
[12] Memórias de impressões e de relações entre memórias, ou seja, memória de memórias.
[13] Que são as impressões produzidas pelos fenômenos.
[14] Um fenômeno produzido no âmbito da objetividade pode ser impresso no organismo pela audição e também pela visão, olfato, tato e gosto. E isso só ocorre em razão das diferentes formas do fenômeno. No grupo de estudos sobre inteligência Sebo Café, essa questão foi exaustivamente examinada no curso de mais de dois anos. Iniciamos constatando que não há como assegurar existirem dois elementos na natureza que possam ser rigorosamente idênticos. Só o fato de ocuparem diferentes posições no espaço e estarem sob influência de forças ou agentes distintos faz com que cada elemento, embora se submetendo às mesmas reações a ações, tomado em consideração sob o ponto de vista da sua forma, seja único no âmbito do universo.
[15] Pelos meios exógenos da visão, audição, tato, olfato e gosto e dois comandos endógenos, compulsórios, um coordenando a reprodução no bojo das estruturas orgânicas e outro adaptando o ser para sobreviver sempre.
[16] Uma síntese de memória de segundo nível: memória de relações entre memórias.
[17] Por isso que quando essa relação falha, ou não é produzida de forma adequada, gera o trauma, que é uma disfunção entre as sínteses e a racionalidade.
[18]Esse é o verdadeiro sentido da noção de desenvolvimento espiritual nos agrupamentos que dominam essa técnica de aperfeiçoamento humano.
[19] Aqui reside uma questão deveras interessante, mal compreendida (ou ocultada) pela filosofia de escola sobre o real sentido da noção de espiritualidade nas sociedades que resistem ao processo “civilizatório”. Desenvolver a espiritualidade, para algumas sociedades humanamente mais desenvolvidas, é buscar, ao máximo, a concordância entre o sistema de ideias e as impressões produzidas no indivíduo em suas relações com o mundo natural.
[20] Capacidade de receber as representações do mundo natural por meio de impressões sensíveis.
[21] Um trata das relações entre o homem e o universo e o outro das relações entre os sentidos e a razão.
[22] Inconsciente.
[23] Nunca esquecendo que a objeção ceticista é uma trapaça, tremenda e desonesta trapaça, largamente utilizada na filosofia de escola para convencer o homem de sua inata ignorância e da necessidade de aceitar a “revelação”.
[24] O universo sensível se apresenta ao homem sempre e unicamente por meio das sensações. Ou seja, se o homem fosse privado da audição, da visão, do tato, do gosto e do olfato, o universo todo, para o seu sistema racional, não existiria.
[25] Sínteses.
[26] Em verdade, das impressões produzidas pelo universo no organismo,
[27] Que compõem as verdades de cada pessoa.
[28] Por meio da “ciência” (ideias e crenças sobre a natureza).
[29] É claro que como o desenvolvimento do sistema relacional, a razão adquire a capacidade de produzir um sistema metafísico puro, como a matemática, mas isso só é possível depois de constituída a razão mediada pelos sentidos.
[30] Penso ter exposto, de forma satisfatória, a distinção entre as representações das verdades e das crenças em um sistema de racionalidade.
[31] Não obstante a genialidade do filósofo que produziu o método utilizado pelo iluminismo para divulgar os avanços nas ciências de sua época, os compromissos de Kant com a filosofia de escola não lhe permitiram ir adiante no exame da natureza dos juízos de modo a enfrentar – e resolver definitivamente – o problema da trapaça ceticista, ao distinguir conhecimento e ciência na constituição da racionalidade humana.
[32] Sínteses ou memórias.
[33] Embora sob o ponto de vista de seus signos a palavra possa conter matéria, sob o ponto de vista do indivíduo ela estabelece apenas uma relação transcendente.
[34] Por meio dos sentidos.
[35] Nesse caso, a palavra assume o papel do universo na constituição do sistema racional.
[36] Nos estudos da matemática, isso é facilmente percebido. A introdução de objetos no ensino da matemática destrói completamente a capacidade de o indivíduo entender o sistema de relacionamentos que esse sistema de ideias (puras) utiliza.
[37] Que em verdade são memórias produzidas pelos sentidos.
[38] Isso tudo faz o homem escravo de um sistema de ideias que o aprisiona de tal forma, com tanta força e potência, que ele jamais conseguirá se libertar de algo que foi ele mesmo quem produziu.
[39] Evidentemente que, se for examinado, mais detidamente essa questão, que não faz parte dos propósitos do estudo, é evidente que o sistema de inteligência remonta ao surgimento da vida e que há, nos organismos, instruções que são legadas nas espécies para as gerações que se sucedem, como instruções de como produzir ninhos entre as aves, caçar entre os animais selvagens, etc, que independe de aprendizado racional.