Informações relevantes aos integrantes do Grupo de estudos Augusto Teixeira de Freitas
Sobre a atualizaçãoo da linguagem do texto
A linguagem do texto da
Consolidação das Leis Civis está em processo de atualização. Por
isso, eventuais inconsistências precisam de correção. Essa obra,
produzida entre 1855 e 1857, é um dos mais interessantes textos
jurídicos já produzidos no Brasil.
Na leitura, é importante
atentar para o fato de que a classificação da legislação civil em
uma parte geral, tratando das pessoas e das coisas, e outra especial,
disciplinando os direitos reais e pessoais, é criação original de
Teixeira de Freitas (que influenciou a codificação do direito civil
no mundo todo).
Trata-se de um avanço
extraordinário para essa época, pois, até então, o sistema
vigente de “jurisprudência” era pautado por relações entre
pessoas e entre pessoas e coisas. Tanto que o código napoleônico,
de 1804, embora acrescentando uma parte referente à aquisição de
propriedade, continuava estruturado nos molde do direito antigo (sem
distinguir direitos reais e direitos pessoais do modo feito por
Freitas).
Outra questão importante é
entender o sistema desenvolvido pelos jurisconsultos romanos. O
“direito” romano (jurisprudentiae) é, antes de tudo, um
sistema cujo propósito é organizar a inteligência humana no exame
das relações que se estabelecem entre pessoas e entre pessoas e
coisas e, por consequência, ordenar, entre outras questões o uso e
a propriedade de pessoas sobre coisas. Nesse sistema, ter “ação”
significa, da maneira que tratamos hoje, o mesmo de ter “direito”.
Por isso, a revolução que operou o Código de Napoleão ao
organizar um corpo legislativo a partir da ideia de direitos
subjetivos.
Para esta atualização está
sendo utilizada a publicação oficial do governo imperial, de 1857.
Ele é anterior à aprovação da comissão revisora composta por
Visconde de Uruguay, Nabuco de Araújo e Caetano Alberto Soares, em
1858. Para fins de elaboração deste texto, utilizou-se um PDF da 3ª
edição, de 1875, com objetivo de comparar as modificações que a
Consolidação sofreu nos dezoito anos que separam a primeira e a
terceira edições.
Portanto, sugere-se que o
leitor preste atenção sobre algumas questões relevantes em relação
às atualizações feitas por Freitas:
a) entre a primeira e a
terceira edições, é visível a dificuldade que ele teve em
resolver o problema da classificação dos direitos relativos e
direitos absolutos em face dos direitos reais e pessoais. Na primeira
edição, ele classificava todos os direitos pessoais como relativos,
e todos os reais como absolutos. No entanto, como não conseguiu
inserir o direito de personalidade nesse critério (que é absoluto),
acabou mudando na terceira edição. É possível que isso tenha
ocorrido em razão dos debates, à época, sobre direitos civis e
políticos, confundidos com os da personalidade, que não o permitiu
colocar o direito de personalidade como um direito real (de domínio
do homem sobre si mesmo).
b) é interessante
observar que o direito absoluto e distingue do relativo em razão da ideia
relação jurídica: Nos direitos absolutos só o titular do direito é previamente
identificado, já que a obrigação se dirige a todas as demais pessoas e não
apenas a determinados sujeitos, como nos direitos pessoais.
c)
outra questão interessante é a revelação da
influência das ideias de Leibniz sobre as origens do direito: na
natureza, nas convenções, no transcurso do tempo, nas sucessões e
nos ilícitos, buscadas da ora "Nova Methodus Discendae
Docendaeque Jurisprudentiae" (Um novo método de
aprendizagem e ensino de direito).
De agora em diante é preciso
atualizar as 1333 disposições legais da Consolidação. Na medida
em que for sendo concluída, será postada neste espaço.
Saudações e avante!
Paulo JB Leal
Augusto
Teixeira de Freitas
(Consolidação das Leis Civis – 1857)
INTRODUÇÃO
A presente
publicação é a última parte
dos trabalhos preparatórios, que para a reforma da Legislação Civil
empreendera o Governo
Imperial. Examinadas as Leis da nossa extensa Coleção,
distribuídas em suas divisões naturais, explorou-se particularmente a
classe das - Leis Civis -, e delas se apresenta
um extrato fiel. É um trabalho de simplificação, que, destinado à grande
obra do Código Civil
Brasileiro, mal aspira
o merecimento de uma codificação provisória[1].
“Consolidará (tal
foi o programa do Governo) toda a Legislação Civil Pátria com as mesmas
condições da Classificação[2].
- Consiste a consolidação em mostrar
o último estado da
legislação. - A Consolidação será feita por títulos, e artigos,
em os quais serão reduzidas
à proposições claras
e suscinta as disposições em
vigor. - Em notas correspondentes deverá citar
a lei, que autoriza a disposição; e declarar o costume, que está estabelecido contra, ou além do texto.”
Está assim traçada
a natureza e marcha do trabalho, deixando-se porém grande arbítrio. Quais
os verdadeiros limites da Legislação Civil? Quais as disposições atualmente em vigor? Qual o teor de sua coordenação própria?
Os entendedores da matéria, aqueles
que conhecem o estado da nossa Legislação, sua incerteza, seus elementos
heterogêneos, podem bem avaliar a dificuldade e importância destas
questões.
Nunca tivemos Código Civil, e se
por tal reputássemos o corpo das ordenações Filipinas, ou antes o 4º livro delas,
que mais se dedicou aos contratos e sucessões, estaríamos
ainda assim envolvidos na imensa teia das leis extravagantes, que se tem acumulado no decurso de mais de dois séculos
e meio. Também não existe
um só escritor, antigo ou moderno, que puramente
se limitasse à coligir
e ordenar o Direito Pátrio.
Aquelas Ordenações, que são pobríssimas, reclamavam
copioso suplemento. Seus colaboradores, ou pela escassez de luzes de que têm sido acusados[3], ou por fugirem
a maior trabalho, reportaram-se muitas vezes ao Direito Romano,
e mesmo geralmente o autorizaram o mandando até guardar
as glosas de Acursio, e as opiniões de Bartolo e mais Doutores.
Essa franqueza, que a Ord.
L. 3º T. 64 igualmente estendera ao Direito Canônico;
a famosa Lei de 18 de agosto
de 1769, que
deu largas ao arbítrio com o título - de
boa razão -; o outro
subsídio dos - estilos,
e costumes -; tudo
concorreu, para que os nossos
juristas carregassem suas Obras de materiais estranhos, ultrapassando mesmo as raias dos casos omissos. As coisas têm chegado à tal ponto, que
menos se conhece, e estuda,
nosso Direito pelas
leis, que o constituem;
do que pelos praxistas que as invadiram. Outras
causas ainda contribuem
para tão desagradável situação.
A legislação civil
é sempre dominada
pela organização política. Uma legislação moldada
para uma Monarquia absoluta, sob o predomínio de outras ideias, deve em muitos
casos repugnar as condições do sistema representativo.
Quantas leis entre
nós não incorreram desde logo em virtual
e necessária revogação, por se tornarem incompatíveis com as bases da Carta
Constitucional?[4] Quantas
outras não se acham inutilizadas, ou modificadas, só por efeito
das leis novas? A força do
hábito, entretanto, as tem perpetuado, o que para muitos é sempre
grande argumento a falta de disposições
designadamente revogatórias.
Ainda se pensa (por exemplo), com o apoio
da Ord. L. 4º,
T. 81 § 6°, que temos - servos da pena -, e que os condenados à morte não podem fazer testamento[5]. O Código
do Comércio no art. 157 ainda
fala da - morte civil -[6]. A sanção da Ord. L. 2º T. 18 contra
corporações de mão-morta possuidoras de bens de raiz ainda se aplica,
como se o commissio não for a
uma confiscação[7]. Também crê-se, que os serviços feitos ao
Estado são artigos de propriedade, que se pode ceder e legar na forma do caduco Regimento
das Mercê, de 19 de Janeiro
de 1671[8]. A separação dos poderes políticos, não impede que os
Magistrados exerçam funções que lhes são estranhas[9].
Examinar as leis em seus próprios textos sem influência de alheias opiniões, comparar atentamente as
leis novas com as antigas medir com precisão o alcance e as consequências de umas e outras;
eis o laborioso processo que empregado temos para conhecer a substância viva da Legislação.
Para achar, porém; os limites do Direito Civil;
e a norma da exposição das matérias, que lhe pertencem; recorremos à estudos
de outra natureza, consultamos os monumentos.
legislativo, revimos
e meditamos as tradições
da ciência; e com livre espírito procuramos essa unidade superior, que concentra verdades
isoladas, penetra as mais recônditas relações, e dá esperanças de um
trabalho consciencioso.
A parte prática,
e, por assim dizer, material
do trabalho, terá em si mesma
a prova de sua boa, ou infeliz, execução, já quanto às disposições adotadas e
substanciadas, já quanto à fidelidade e exatidão do transunto, já quanto às qualidades do estilo. Os legistas limitar-se-ão a comparar o texto de cada um dos artigos
com a lei, ou leis,
que o abonam em suas respectivas notas. Os jurisperitos irão mais longe, e nessas mesmas notas a acharão fecundos
traços, proposições suscetíveis dos
mais ricos desenvolvimentos. A natureza do trabalho não consentia demonstrações.
Cumpre
advertir, que não há um só lugar do nosso texto, onde se trata de escravos. Temos, é verdade, a escravidão
entre nós; mas, se esse mal é uma exceção, que lamentamos; condenado à extinguir-se em época mais,
ou menos, remota; façamos
também uma exceção, um capítulo avulso, na reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas,
que não podem servir para a posteridade: fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As Leis
concernentes à escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas à
parte, e formarão nosso Código Negro[10].[11]
A parte teórica, ou
científica, demanda algumas explicações, tendentes sobretudo a justificar o método
seguido; e a fornecer esclarecimentos tanto mais necessários, quanto
independentes foram as
ideias que o determinaram.
A demarcação dos limites da Legislação Civil
é assunto, que não se
pode separar do exame geral as outras
divisões, que compõem a tábua sintética da Classificação das Leis[12]. Basta saber por ora, que tomamos o Direito Civil em sua acepção mais estrita, excluídas as leis do processo, as da
respectiva organização judiciária; e
também as disposições excepcionais, cujo complexo forma hoje o Direito Comercial[13].
Conhecido o quadro da legislação Civil, era de mister conhecer suas divisões peculiares, e destas trataremos agora ocupar. Principiaremos
pelo atual sistema do Direito Civil,
fixaremos depois algumas noções fundamentais, investigando a teoria dos - direitos reais - e dos - direitos pessoais -
; e indicaremos por último a aplicação que se pode fazer dos princípios. Dispor elementos para a projetada
reforma, tal é o pensamento, que nos domina.
ATUAL SISTEMA DO DIREITO CIVIL
Como se fosse
possível dar força
de lei à proposições científicas, vê-se escrito nas Pandectas, que todo o direito refere-se às pessoas,
coisas, e ações.- Omne jus vel ad personas
pertinet, vel ad res, vel ad actiones[14]
Este enunciado foi aceito pelos Comentadores como uma regra de divisão para as matérias
do Direito Civil,
foi considerado um princípio classificador das Leis Romanas. O que
há,
porém, de comum entre a suposta regra e a ordem seguida
naquelas Leis? O Código e o Digesto
tratam do Direito Privado, e também do Direito
Público; e a série de seus Livros é tão destituída de nexo, que não denota observância de método
algum[15].
Nas Institutas, destinadas ao ensino,
a pretendida norma devera ter sido rigorosamente observada. Também isto
não se confirma. Se o 1º Livro
tem no Tit. 3º a inscrição - de
jure personarum -, se o 2º Livro
intitula-se-de divisione rerum et qualitate - rematando pela sucessão testamentaria; o 3º
Livro começa pela herança ab intestato, como
se fora matéria distinta do Livro
antecedente, e termina com uma parte da matéria de obrigações. As obrigações ex
delito acham-se desligadas no 4º Livro,
que acaba pelas
ações e ordem do Juízo.
Essa incoerente distribuição de matérias foi regularizada por alguns escritores com a divisão
em três Livros, que correspondessem à tríplice
distinção; porém a primeira dificuldade estava
em bem entendê-la. Os Jurisconsultos não estão de acordo sobre
o que deva conter a primeira parte - de personis -, e a
dúvida renasce no limite das outras duas
partes - derebus - e - de actionibus -.A significação
destas palavras tem sido diferentemente entendida, querendo uns que as - obrigações - no Tratado das ações, como uma
introdução às ações que delas derivam; e mesmo porque todas as ações, inclusive a - actio in rem -, apresentam-se sob a forma de crédito contra aquele, que tem lesado nossos direitos[16].
Tal foi o expediente, que tomaram, Mello Freire[17], e Borges
Carneiro[18],
na exposição do nosso Direito Civil, comum a
Portugal e ao Brasil. Um primeiro Livro
para as - pessoas -, o segundo
para as - coisas -, compreendendo
assim a sucessão testamentaria, como a sucessão ab intestato: e o terceiro Livro para as - obrigações - e - ações -. As doações inter vivos, e
causa mortis, que por motivo peculiar estavam no Livro
das Institutas - de divisione rerum -[19],
foram transportadas para o Tratado das obrigações,
à par dos outros Contratos
benéficos.
Melhorou-se
destarte o arranjamento das Institutas, mas não se aplicou o tipo adotado. O
terceiro membro da divisão compreende as obrigações e as ações, quando só
devesse conter as ações. Confundiu-se além disto matérias, que são
essencialmente distintas.
Sem
dúvida há um ponto de semelhança entre as - obrigações -[20],
e as - ações -[21];
pois que estas, ainda mesmo motivadas pela violação de direitos absolutos, tem
sempre um caráter relativo. Ninguém desconhece, entretanto, que a obrigação
preexiste independente da ação; e que a ação é a via comum, tanto para fazer
valer em Juízo o direito das obrigações (direitos pessoais), como para
restabelecer o direito sobre as coisas (direitos reais).
Não sendo possível
harmonizar por este
meio a realidade das coisas com o imaginado tipo, recorreu-se à outros
expedientes. Alguns
consideram as - obrigações - como matéria
pertencente ao primeiro
ramo da divisão - pessoas -[22];
e também entendeu-se, que a palavra
- ações -, empregada no fragmento de Gaio,
designava, como na acepção vulgar,
o mesmo que -fatos -, capazes
de produzir, ou de fazer cessar, direitos ou obrigações[23].
A opinião
mais geral[24] separa
o terceiro ramo da divisão
relativo às - ações - como uma classe de -
direitos particulares -, estabelecidos para segurança dos outros direitos; e que os supõem violados, ou ameaçados de violação[25].
Sob o nome de - pessoas - compreende unicamente as diversas espécies
de - poder -, que
uns podem ter sobre
outros - jura potestatis -. Sob o nome
de - coisas - abrange, não só o direito
real, pelo qual uma coisa
nos pertence; senão também o vínculo especial, que obriga uma pessoa à dar, fazer,
ou não fazer. É fácil conhecer o que
há de vicioso, e arbitrário, em semelhante nomenclatura, e nas suas distinções.
Se começamos pelas - pessoas -, e descrevermos todos os seus direitos; nada mais teremos
à fazer, e torna-se portanto inútil a divisão. Que razão (a
não dar-se um ponto de vista especial) para, tratando-se dos direitos das
pessoas, indicar tão somente
os
- jura potestatis -, e excluir todo, os outros? Todo o direito pertence às pessoas, todo o direito
é - poder efetuado -, embora exercível com mais ou menos intensidade. As
diferentes espécies desse - poder efetuado - são os direitos
considerados em sua extensão. Daí dimanam
as distinções, e as divisões.
Se
começamos pelas - coisas -, no
sentido amplo, também não podemos
ir mais longe.
As coisas, ou são de criação
natural - res corporales -, ou de criação jurídica - res
incorporales -. As coisas incorpóreas - quae tangi non possunt - compreendem todos os
direitos - quae in jure consistunt -[26], e obrigações por qualquer modo contraídas
- obligationes quoquo
modo contractae -[27]; e admitida esta teoria, como judiciosamente pondera Ortolan, todos os direitos vêm sucessivamente acomodar-se na divisão
das coisas incorpóreas[28].
Se tomamos as - coisas - no sentido estrito e natural,
distribuindo-as para uma classe
privativa, e reservada para outra classe - a das pessoas - as - prestações de fatos
- ou - serviços[29],
achar-nos-emos com os seguintes resultados:
1º As disposições concernentes ao domínio, às
suas desmembrações, serão reunidas
com a matéria de obrigações relativas à entrega
e ao gozo das - coisas, - obligationes dandi -, quais as dos Contratos em sua maior
parte:
2º
Dessas obrigações relativas às coisas serão
separadas todas as outras, que tendem ao cumprimento de serviços,- obligationes faciendi -, quais as dos contratos de
mandato, locação de serviços; assim
como as que respeitam à extensão do poder paternal, e do
poder marital:
3° Desaparecerá desta sorte toda a diferença entre direitos reais, e direitos pessoais;
diferença tão importante, que é a chave de todas as relações civis.
Eis o fruto da rigorosa aplicação
de um enunciado equivoco,
que não pode ser preceito de método. E como romper os laços naturais das
relações jurídicas, envolvendo em fictícias combinação direitos, que derivam de princípios
opostos; e desligando
outros, que visivelmente funcionam com
idênticos efeitos?
Renda-se homenagem à sagacidade dos jurisconsultos Romanos, mas não se diga, que houve
ideia normal de sistema nesse famoso texto, cuja
importância se tem exagerado.
Para evitar
os indicados inconvenientes, várias classificações foram outrora propostas por
alguns Jurisconsultos de espirito mais independente[30].
Entre eles sobressai o célebre Leibnitz, que com o poder de seu gênio censurou
as Istitutas; e proclamou o supremo princípio, que deve dominar nestas matérias[31].
A divisão, disse
ele, não foi deduzida da consideração, que só pode ervir de base a uma
classificação jurídica; isto é, - da diferença, que se observa entre os
direitos e as obrigações. Não são as pessoas,
e as coisas, que se devem
distinguir; mas suas obrigações, e seus direitos. O terceiro membro - ações - é superabundante, porque as - ações - nada mais são
do que consequência dos direitos; e por ocasião destes devem ser explicadas[32],
seguindo a importante distinção do - jus in re - e do - jus ad rem -, isto é, do - domínio -
e da - obrigação -.
Sem
dúvida, é impossível haver verdadeira classificação, sem que se a derive das
diferenças e conformidades, que constituem a natureza das coisas; e tal foi o
princípio diretor, que cuidamos de fixar logo ao começo dos nossos trabalhos.
Leibnitz, porém, teve de aplicá-lo ao Direito Civil, procurando a diferença dos
direitos na diferença das causas,
que os fazem nascer, ou que os fazem
cessar[33].
Ele distinguiu cinco causas de direitos: 1°, a natureza, 2º, a convenção, 3°, a
posse, 4°, a sucessão, 5°, o delito.
Uma crítica
bem fundada desta
classificação lê-se no Prefácio, que serve de introdução à parte das Obras de Leibnitz
relativa à jurisprudência. Transcreveremos o próprio texto:
“É com razão, que Leibnitz procurou
tirar da diferença dos direitos todas as divisões da ciência das leis. Mas os direitos não diferem somente sob o ponto
de vista das causas, que os
produzem. Direitos, que apresentam a maior semelhança, podem derivar de causas diferentes; ao passo que a mesma causa pode produzir direitos que não tem
entre si a mesma analogia.”
Além
disto, acrescenta Blondeau[34], a palavra - natureza -,
pela qual designa
Leibnitz a primeira das causas, é extremamente vaga; e como ele entendia por convenção
a própria lei, que considerou resultado do consentimento, ao menos tácito, de todos
os membros da sociedade; poder-se-ia em rigor refundir
nesta segunda causa quase todas as outras,
e principalmente a sucessão e
a posse.
Ao brilhante esforço
de Leibnitz, que encerra uma verdade
eterna, embora
mal aplicada, não são comparáveis outras tentativas, que se fizeram
até meados do século último.
Domat foi pouco feliz
na divisão do seu Tratado
das Leis Civis em
duas parte, - engajemens -[35] sucessions -, e o seu -
Delectus
Legun - tem a mesma ordem dos
cinquenta Livros do Digesto. Pothier nas suas Pandectas também não se desviou dessa
ordem, e foi no Tit. Último - de diversis regulis juris antiqui - (uma espécie de recapitulação de todas as matérias), que
ele adotou um novo plano,
aproximado ao das lnstitutas[36].
A classificação de Pothier compreende o Direito Público, e inclui todo o Direito Privado, sem escapar as formas do - processo -, que não
foram separadas das - ações - e exceções.
- Seu defeito capital está na confusão dos direitos pessoais com - os direitos
reais -, cuja diferença foi quase aniquilada; pois que são envolvidas as servidões,
a hipoteca, a herança, e as obrigações, como
espécies de coisas incorpóreas.
Este vício tem sua origem nas ideias do
próprio Direito Romano, que o insigne Jurisconsulto substanciara.
Mais tarde a necessidade de uma melhor classificação foi geralmente sentida,
inúmeros ensaios sucederam-se rapidamente, o método
antigo foi quase
banido das escolas. Fal1amos,
da Alemanha, o país
da meditação, onde a ciência do Direito, associando-se à história, e à filosofia, tem alcançado os mais brilhantes triunfos. Não são em tudo concordes
os jurisconsultos da nova escola,
mas prenunciam-se com
poucas exceções, contra a ininteligível divisão de - pessoas, coisas, e ações.
Quando começaram os trabalhos do Código Civil Francês em 1799, as novas ideias não tinham ainda tomado
toda a sua ascendência. Dominava em França o Direito Romano,
e o que mais, se conhecia,
e estava em voga, quanto a inovações sobre o método do Direito Civil, limitava-se aos sistemas de Domat, e de
Despeisses, cuja simplicidade tem sido encarecida, e até pelo próprio
Me1levile, um dos colaboradores do código, a ponto de lamentar que não se a houvesse
adotado.
O que existia de codificação naquela época reduzia-se também ao Código de Baviera publicado em 1756, e ao da Prússia promulgado em 1794[37].
Esses Códigos extensos,
o primeiro no sentido das ideias reinantes do Direito Romano[38], e o segundo delineado como parte de um plano geral, eram menos próprios
para servir de modelo[39]. De resto pouca importância se deu em França à questão fundamental do método,
e a prova esta em que o Código se
foi decretando à retalhos;
mandando-se depois incorporar as trinta e seis leis destacadas, que o compuseram.
Não se seguiu nem o método de Domat e
de Despeisses, nem a ordem das Institutas; sem se perder contudo
de vista a antiga divisão
de pessoa e coisas.
O 1º Livro intitula-se - das pessoas
-, e o 2º Livro - dos bens e das diferentes modificações da
propriedade -. Se alguns vêm nisto um arremedo das Institutas, e fazem merecidas críticas em combinação com as matérias do 3º Livro,
que se inscreve - dos diversos modos de adquirir a propriedade -; outros,
menos razoáveis, defendem à todo o transe o Código de seu país,
explicando a divisão por um modo estudado, e proclamando sua excelência[40].
O que, porém, não se pode harmonizar
é a inscrição do 3º Livro sobre os modos de aquisição da propriedade; inscrição
que deu matéria para mais de dois terços dos artigos, de que se compõe o Código
todo. Abandonou-se, é verdade, a máxima cardeal do Direito Romano, reguladora
da transferência do domínio[41], passando o título a ser
modo de adquirir. Mas quem quererá conceder, que
sejam contratos translativos de
propriedade o depósito, o
mandato, e a locação de
bens ou de serviços? Que analogia tem
com o enunciado desse imenso Livro 3º o pagamento, a novação, a compensação, a remissão, e até (contrainte
par corps) a detenção pessoal?
Com muita
razão se tem
dito que a última divisão do Código Civil Francês poderia
ter compreendido todas as
leis civis, e que o tratado
das pessoas e das coisas não passa de simples preliminar[42]. Que tanto é assim, que, para dar-se alguma consistência aos dois primeiros Livros,
foi necessário inserir neles,
muitas matérias, que poderiam entrar
no 3º Livro como relativas aos meios de adquirir. Tais são no 1º Livro
a ausência que dá lugar à
sucessão provisória, o casamento, a filiação, a
adoção, o pátrio poder; e
no 2º Livro a acessão,
o usufruto, o uso, a
habitação, e as servidões.
Não obstante
seu método artificial, e com o mau princípio da transferência do domínio só
por efeito dos Contratos, o Código Civil da França tem exercido poderosa
influência. Ao tempo da sua
promulgação (em 1804) deu-se a favorável circunstância de imperar logo
como lei por toda a parte, onde se
fez ouvir a voz do conquistador, que lhe impusera seu nome. Restaurada
a Europa, o método conservou-se, e tem-se imitado, posto que as disposições
constitutivas do direito de
propriedade em relação à terceiros estejam profundamente alteradas.
As divisões gerais do Código Civil da
França são as mesmas dos Códigos da Sardenha, Duas-Sicilias, Luisiana, Ducado
de Baden, dos Cantões de Vaud e de Friburgo. Todos esses Códigos formam um só
grupo.
Fazem grupo
diverso o Código Civil Austríaco de 1811, o do Cantão de Berne de 1831, e o da Holanda de 1838. Não seguiram a ordem do Código Francês,
e exigindo, além do
título, um ato exterior para regular a transmissão da propriedade,
guardam a antiga classificação geral, mais ou menos modificada.
No da Holanda acha-se
precisamente a tríplice divisão de pessoas, coisas, e obrigações,
a que acresceu um 4º Livro
que se intitula - da prova e da prescrição - . Declarou-se categoricamente
na Memória Justificativa do primordial Projeto desse Código[43], que
rejeitava-se o plano
e a teoria do Código Francês.
Admitindo-se a distinção das
leis romanas (dizia
o autor da citada Memória)
entre o direito
na coisa, e o direito contra as pessoas,
- jus in re - e - jus ad rem - não hesitou-se em adotar a ordem das Institutas, que por sua clareza e simplicidade excede
à todas as outras, e que está confirmada pela experiência dos séculos;
e consagrada pela autoridade de quase todos os filósofos, e dos mais notáveis jurisconsultos.
Este rasgo de
elogio ao inculcado método das Institutas
foi um anacronismo, porque em 1819 (data
da Memória) já se
havia convindo quase
geralmente em abandonar a divisão antiga, já o Direito Romano era
lecionado por ordem diversa, e circulavam as Obras de Hugo, Mackeldey, e outros, onde domina a ideia
capital do Leibnitz sobre a diferença dos direitos.
O Código da Áustria trata no 1º Livro dos
- direitos reais -, e no 2º Livro
dos - direitos pessoais -. O do
Cantão de Berne segue a mesma divisão, porém
ressentindo-se mais ostensivamente do
vício da antiga classificação; porquanto os direitos reais e
direitos pessoais são subdivisões do direito das coisas, sendo o outro ramo
da divisão geral o direito das pessoas
não aparecem as denominações - direito das coisas - e - direito das pessoas -; mas o fundo
do pensamento é o mesmo, dizendo-se - direitos pessoais sobre as coisas
-, e não simplesmente - direitos pessoais -. É na Introdução, ou Parte Geral,
que se trata do - direito relativo às pessoas
-, e do - direito relativo às coisas -; comparem-se porem essas duas
seções, e ver-se-á que a das pessoas
teve 284 artigos,
e a
das coisas 24 artigos somente.
O motivo de tal desproporção? Ter-se tratado na Seção das pessoas de
todos os direitos de família[44], o que por certo não está na ordem
das disposições gerais ou preliminares.
O Código
do Cantão de Argovia, cuja
primeira parte somente
nos é conhecida[45], parece querer tomar diferente direção. Começa pelos - direitos pessoais -, e sob esta inscrição trata
primeiro dos direitos de família, compreendidos na denominação secundária de -
direitos pessoais propriamente ditos -. Qual
seja a marcha ulterior desse
Código, não se pode
prever; entretanto a divisão geral direitos
pessoais, abrangendo os direitos
de família, já denota novidade de plano[46].
Na exposição do nosso Direito Civil, o que há de
inovações no método
antigo, atribuído às Institutas, não passa do Digesto
Português de Corrêa Teles, e das Instituições de Coelho da Rocha, Professor
na Universidade de Coimbra[47].
A primeira destas Obras, que seu autor
considerou uma coleção
de matérias para
o Código Civil
de Portugal, não apresenta na distribuição e série de seus artigos
ordem alguma, que se
possa racionalmente justificar. O ilustre Jurisconsulto renegou os precedentes da legislação do seu país, esposando as ideias do Código Civil Francês,
dispensando a tradição para transferência do domínio,
e quase destruindo a diferença dos direitos reais
e direitos pessoais, cuja
distinção estabelecera ao encetar sua codificação[48].
Envolveu com a matéria
dos Contratos os modos originários de
adquirir a propriedade, e bem assim o usufruto,
o uso, a habitação, a hipoteca, e a sucessão
testamentária. Tudo isto acha-se acumulado no 3º Livro, e no 1º Livro é que se trata
dos direitos, que derivam da propriedade e da posse,
assim como dos modos de fazer cessar
as obrigações, e da prescrição. A sucessão a intestado está no 2º Livro com os direitos
de família, e em apêndice trata-se aí da locação
de serviços, porque
se diz - os criados são como acessórios de uma família[49].
O
sistema inteiro de um Código
depende muitas vezes
de uma só disposição[50]. Se o respeitável autor
do Digesto Português, imbuído
nos princípios de um falso
Direito Natural[51] que não combina com os interesses da sociedade as relações
entre as partes contratantes, resolveu
adotar a disposição do Art. 1583 do Código Civil
Francês, um dos corolários da outra disposição genérica do Art. 711; era necessário, que não tivesse
omitido as diversas restrições desse Código,
que serviram de corretivo (se bem que incompleto)[52] ao seu sistema espiritualista, e acautelaram funestos
abusos[53].
Ao contrário, se por um lado foi indiferente à todas as exigências da sua inovação, tomando-a isoladamente, e não como aplicação de uma teoria,
que substitui o pensamento ao fato; por outro lado
foi contraditório, excluindo a tradição, e ao mesmo
tempo conservando as regras do Direito Romano, e do Direito Português, à respeito da tradição ficta,
e simbólica, e dos atos
solenes da posse[54]. Se o simples
consentimento dos contratantes basta para transferir a propriedade, sem dependência da
posse; não há necessidade de ficções, nem de símbolos, que antecipem a tradição
real; nem tão pouco de atos exteriores solenes, que a manifestem.
A segunda
Obra (a do Professor Coelho
da Rocha) anuncia no prefácio a escolha do método de
Mackeldey, entretanto que a imitação muito
discorda do modelo[55]. O que há de
semelhante é a Parte Geral, onde
se estabelecem noções
sobre os três - pessoas, coisas, e
atos jurídicos; porém Mackeldey não dividia, nem podia dividir, em relação à esses três elementos, a Parte Especial, onde
procurou expor as diversas
espécies de direitos[56].
A exposição
dos direitos, em simetria exterior
com aquela divisão elementar, conduziu o distinto Professor à um desfecho, que não pode
agradar. A sucessão a intestado foi separada da sucessão testamentária, e esta
última espécie de sucessão veio unir-se aos contratos. E como perceber
nesta repugnante junção a diferença dos direitos
reais e dos direitos
pessoais, que Mackeldey fizera tão sensível
em dois livros distintos? O sistema
do sábio Professor Alemão não pecou
por este lado, mas pela abundância de divisões escusadas.
Tenham
os professores liberdades na opção do método mais próprio para facilitar o
ensino, porém não haja nisso puro arbítrio. O método influi na teoria, e a
teoria, em matérias de direito positivo, nunca deve contrariar o pensamento
legislativo, deve somente aplicá-lo. Para evitar desvios[57] e para
ao mesmo tempo não constranger a doutrina, ou falsificar a ciência, o melhor é
que, empreendendo-se uma legislação nova, muito se medite a respeitos do método
conveniente.
Nós vamos ver como na
distinção dos direitos pessoais, respousa todo o sistema do direito civil.
NOÇÕES FUNDAMENTAIS
As diferenças
inalteráveis das relações jurídicas determinam as naturais divisões da
legislação. A distinção das personalidades, e sua razão de existência,
assinalam os limites do direito público, e do direito privado. A sanção da pena
no direito privado extrema as Leis Criminais das Leis Civis[58].
Na esfera em que nos
achamos, as personalidades estão no mesmo nível, ou sejam singulares, ou
coletivas; a diferença de seus direitos só pode derivar das condições
específicas, ou qualidades intrínsecas, que a análise houver de discernir. Pois bem, observai atentamente
as variadas manifestações desses direitos, estudai a natureza do homem e suas
necessidades; e não achareis outros caracteres mais importantes, donde possa
resultar uma divisão ampla, dominante de todas as espécies, senão que distinguem
os direitos absolutos dos direitos relativos[59].
A condição específica dos direitos absolutos
é que a sua
correspondente obrigação[60]
afeta a massa inteira das personalidades, com
as quais do agente do direito possa
estar em contato. A qualidade própria
dos direitos relativos, ao inverso, é recair sua peculiar obrigação sobre pessoas
certas e determinadas.
No primeiro caso
a obrigação é negativa, consiste na inação, isto é, na abstenção de qualquer ato, que possa estorvar o direito. No segundo caso
a obrigação é positiva,
e consistente na necessidade do um fato
ou prestação da pessoa obrigada[61].
Esse fato ou prestação pode ser também, como no primeiro caso, uma abstenção, mas com uma diferença notável.
A inação
indispensável
para a efetividade dos direitos
absolutos nunca induz
a privação de um direito
da parte daqueles,
à quem a obrigação incumbe: essa inação é necessária para coexistência dos direitos de todos, ou, por outro
modo, é o justo limite
dos direitos de cada um. Quando, porém,
o direito relativo corresponde a uma obrigação
de não fazer, ou de abstenção, a pessoa obrigada priva-se do exercício de um direito
que tinha, e que voluntariamente renunciou em
favor do agente do direito.
Se por estes
caracteres, verificados nos constantes efeitos das relações humanas, é patente a diferença dos direitos
absolutos e direitos relativos, temos as noções
radicais, de que
devemos partir para exato conhecimento do quadro inteiro das Leis Civis.
As tradições da ciência confundem não pouco esta matéria, as palavras nem sempre designam
as mesmas ideias, e da análise e dedução filosóficas colhem-se os seguintes corolários.
Todos direitos absolutos
- liberdade, segurança,
e propriedade[62]
-, entram na compreensão da Legislação Criminal, que os protege
e assegura com a penalidade[63]. Desses direitos o de propriedade unicamente faz objeto da
Legislação Civil[64]. É no direito de propriedade que
havemos de achar os direitos reais.
Os direitos relativos, excetuados os da personalidade pública no círculo
das Leis Orgânicas e Administrativas, de que agora não tratamos[65],
pertencem em regra geral à Legislação Civil[66],
que define e regula as obrigações dos
indivíduos entre si. Eis os nossos direitos pessoais.
Direitos relativos - direitos pessoais - correspondem à mesma
noção, a variedade de expressão não a
especialista. São relativos esses direitos, em contraposição aos direitos
absolutos, porque não recaem sobre
todos. São pessoais, porque
necessariamente dependem da intervenção
de
pessoas individualmente passivas.
Com os direitos reais não
acontece o mesmo.
Em primeiro lugar
é preciso separar
os direitos absolutos, que imediatamente concernem
à personalidade do homem,
que são alheios
da Legislação Civil.
Em segundo lugar, separados esses direitos absolutos
da
personalidade, a ideia
geral da propriedade carece de limitações, sem
as quais a noção dos direitos reais será inexata.
A ideia geral da propriedade é ampla, ela compreende a universalidade dos objetos exteriores, corpóreos e
incorpóreos, que constituem a fortuna ou patrimônio de cada um[67]. Tanto fazem parte da nossa
propriedade as coisas materiais, que nos pertencem de um modo mais ou menos completo, como os
fatos ou prestações, que se nos devem,
e que, à semelhança das coisas materiais, tem um valor
apreciável, promiscuamente representado pela moeda[68].
A noção dos direitos
reais não é tão larga, ela está para a ideia geral da propriedade, como
a parte está para o todo.
A
propriedade abrange os direitos reais,
e também a maior
parte dos direitos pessoais[69]; e não haveria diferença entre estes direitos, se o direito
absoluto de propriedade fosse o mesmo direito real.
Afetar o objeto da propriedade sem consideração à pessoa alguma, segui-lo
incessantemente em
poder de todo e qualquer possuidor, eis o efeito
constante do direito real,
eis seu carácter distintivo. Este caráter é oposto ao do direito
pessoal, que não adere ao objeto da propriedade, não o segue; mas prende-se exclusivamente à pessoa obrigada, - ejus ossibus adaeret ut lepra culí -.
Ora, que os direitos reais não são aplicáveis à
todos os objetos, de que se
compõem a propriedade; facilmente compreende-se, e a observação confirma.
A
possibilidade do direito real,
com o seu
efeito essencialmente físico, só concebe-se em relação aos objetos corpóreos - coisas-
no sentido natural da palavra; e tal é a primeira limitação, que de necessidade restringe a ideia
de propriedade em seu sentido
mais extenso. Qs objetos incorpóreos, que são apreciáveis pelo denominador comum - moeda -, fazem parte
do nosso patrimônio, mas não estão sob nosso domínio,
não são suscetíveis de posse, nem dos efeitos do direito real[70].
Ainda mais,
o direito real recai sobre objetos corpóreos, que existem imediatamente
submetidos ao agente do direito - incidimus in eum
-·, é afirmação
do nosso poder sobre o objeto do direito; - in re potestas plena -, se se trata do domínio; - pro parte
-, se se trata dos outros direitos
reais; entretanto que os objetos,
representados pelos fatos,
ou prestações, que se nos devem, terão
de existir, depois
que esses fatos forem cumpridos por um intermediário passivo do direito - nulla in re potestas -.
Outra distinção ainda se faz necessária, para que a noção,
que analisamos, fique precisamente em seu valor. As coisas objetos corpóreos são móveis, ou imóveis[71].
As coisas
móveis, sujeitas à contrectação[72], sem assento
fixo[73],
suscetíveis de circulação rápida[74],
de fácil deterioração[75],
consumíveis algumas ao primeiro uso, consistindo muitas vezes em gênero e não em espécie, determinando-se por quantidades abstratas, e podendo ser
substituídas por outras coisas
homogêneas, que preenchem
as mesmas funções[76],
escapam em grande parte à afetação e sequela,
e aos efeitos, dos direitos reais[77].
As segundas - solum et res solí -, pela sua natural consistência, por seus
atributos peculiares, vantagens
que oferecem,
constituem a propriedade por
excelência[78],
são a verdadeira sede dos direitos reais.
Verifiquemos esta conclusão.
O
direito real tem duas
manifestações, uma necessária, e a outra possível.
Ou nos o exercemos sobre
nossas próprias coisas - jus
in re propria, ou sobre coisas de outros - jus in re aliena.
Em relação às nossas próprias coisas, o direito
real é o próprio domínio; e como seu objeto em tal caso
é a propriedade plena, quando tal, com todos os direitos elementares, que a constituem, não podem haver espécies[79].
Em relação
às coisas de outros, o direito real tem
por objeto a propriedade limitada; e como a limitação
pode ser realizada por vários
modos, a diferença entre eles pode
ocasionar outras tantas espécies de direitos
reais[80].
Se o proprietário,
para garantir o que deve, sujeita a propriedade ao
credor, obrigando-se à não aliená-la - propriedade afetada -, dá-se
o direito real de hipoteca. Se desmembra o domínio,
perpétua ou temporariamente, transferindo a outro a utilidade da coisa, dá-se
a enfiteuse. Se transfere o direito de posse, uso,
ou gozo, mais
ou menos completamente, - propriedade dividida, gravada, - dão-se os direitos reais das servidões, superfície, usufruto, uso, e
habitação.
Concebe-se, que o direito
real do domínio
recaia, e produza seus efeitos sobre uma certa
classe de bens
móveis[81]; entretanto, que possível é sempre sobre
coisas imóveis. A usurpação das coisas móveis
dá lugar à ações criminais por furto, ou roubo; a sua restituição, ou a indenização do equivalente, consegue-se no juízo civil por uma ação pessoal ex delito[82].
As coisas imóveis não podem ser furtadas[83].
O proprietário excluído faz sempre valer
seu direito real, demandando à todo e qualquer
possuidor[84].
Quanto aos outros direitos reais - jura in re aliena -, concebe-se a aplicação da hipoteca aos bens móveis,
e há disto exemplos[85]; também
há exemplos da aplicação do usufruto[86],
especialmente aos móveis, que se não consomem ao primeiro uso[87].
Entretanto que, não só a hipoteca e o usufruto, como todas as outras espécies de direitos reais, são próprias dos imóveis. As servidões reais[88], a enfiteuse[89], os direitos aderentes ao interior e à superfície
do solo, são direitos reais, que não
podem recair senão
sobre imóveis[90].
É portanto nas coisas imóveis
que o direito real aparece
em suas diversas manifestações, e
acha a possibilidade de seu desenvolvimento completo. Poder-se-á, porém, pela observação de seus efeitos
e caracteres remontar à causa que os produz?
Haverá um princípio determinante dos direitos
reais, que a priori se possa
assinalar, e sirva de regra às legislações?
No domínio
é o proprietário somente, que se acha em relação imediata com a coisa,
e sem o direito real o
domínio seria aniquilado. O
direito real em tal caso é um poder inerente ao domínio, é o mesmo domínio,
e com ele se confunde[91].
Nos outros
direitos reais - Jura in re aliena - o
agente do direito também está em relação imediata com a coisa. e sobre
ela exerce, posto
que parcialmente, ou até certo
ponto, um poder tão independente, como o do domínio;
mas esse direito não está
só, ele coexiste com o do proprietário, de que foi uma emanação.
O
domínio é a soma de todos os direitos possíveis, que pertencem ao proprietário sobre sua coisa,
quais são os da posse, uso e gozo, e livre disposição[92]. Os outros direitos reais são parcelas daquela soma, são os próprios direitos
constitutivos do domínio; são poderes, que sobre a coisa
se atribuem a outras pessoas.
Se em todos os casos de atribuição desses
poderes realizados víssemos nascer um
direito real, haveria por certo um
sinal indicador, uma causa eficiente dos direitos reais na coisa alheia.
As Legislações, e a Historia do Direito, atestam o contrário.
As servidões, o usufruto, a enfiteuse, o direito
de superfície, e outros direitos análogos, são faculdades de uso, e gozo, conferidos pelo
proprietário da coisa; da mesma maneira que o são a locação,
e o comodato. Entretanto, se das primeiras derivam direitos reais, não só pela Legislação Romana, como por todas as legislações; o mesmo não acontece com as segundas.
A Legislação Francesa[93] em contrário à L. emptorem,[94],
e à
nossa Ord. L. 4º Tit. 9º[95],
nega ao comprador da coisa arrendada o direito de despejar o arrendatário;
e desta maneira elevou a locação
à categoria de um direito real,
transformando a natureza deste
contrato. Muitos Jurisconsultos, como Delvincourt[96], Toullier[97], Duranton[98],
Proudhon[99],
e Duvergier[100],
sustentam ainda assim, que a locação
só confere um direito pessoal;
mas o sábio Troplong[101]
os refuta tão vigorosamente, que nada deixa
à desejar. “Ora,
o que é um direito
(diz ele)[102], que da pessoa, recai sobre a coisa
por uma afetação
direta e incessante, que segue esta coisa de mão em mão, que sobrevive às alienações, e às mudanças de proprietários? Será um desconhecido em jurisprudência? Não. Os Jurisconsultos de todos os tempos
o têm chamado - direito real -”.[103]
Ainda ha outro exemplo.
Em Genebra, no projeto
de Lei relativo à
aquisição6, conservação, e publicidade, dos direitos reais sobre
imóveis, organizado em 1827 por
Girod, Rossi, e Bellot[104],
foram submetidos os arrendamentos à inscrição como direitos
restritivos do de propriedade. “Pela vez primeira talvez (disse a Comissão
em sua Exposição de motivos)[105], os arrendamentos são colocados entre
os direitos reais”.
O nosso
próprio Direito Pátrio oferece-nos à tal respeito
uma prova, à que deve-se atender. A teoria das Ordenações
Filipinas sobre arrendamento é a mesma da L. emptorem,
a locação não engendra senão
uma relação particular entre o locador e o locatário; entretanto cessava esta
regra, se o arrendamento era de dez anos, ou mais, nos termos da Ord. L.
4.º, T. 9º[106],
reputando-se o arrendamento em tal caso um contrato enfitêutico[107].
Sobrevieram o Alvará de 3 de Novembro de 1857, e a Lei
de 4 de Julho de 1776, que reduziram a locação à sua
natureza pessoal, ainda que fosse de
cem anos, e até colônia perpétua[108]. E que diferença existe entre uma colônia perpétua, e um aforamento perpétuo?
Não está o uso, e gozo, para sempre
transferido no colono?[109].
Pelo lado da posse
somente, ou detenção, da coisa, nós a vemos no penhor produzir um direito real[110], o que já não
acontece no depósito. Nem
o credor pignoratício, nem o depositário, podem usar, e gozar, da coisa[111]. O Direito Romano admitiu o furto do uso da coisa
em relação ao depositário, e credor
pignoratício[112];
e essa disposição passou para o nosso Direito.[113]
No caso da anticrese há uma retenção da coisa, igual a do penhor[114];
mas, se o credor anticrético tinha um direito real pela Legislação Romana[115],
e o tem por muitas legislações modernas[116], o Código Civil
da França parece negar-lhe,
conferindo-lhe tão somente direito de retenção, e gozo (Arts. 2085 e 2087), e
não querendo que essas faculdades prejudiquem aos direitos, que terceiros possam ter adquirido sobre o imóvel (Art.
2091), ou esses direitos sejam
anteriores, ou posteriores, ao estabelecimento da anticrese[117].
A hipoteca não confere ao credor, nem
uso, e gozo, nem ao menos posse; e entretanto produz um direito real, que está
para a coisa, do mesmo modo que o direito pessoal está para a obrigação -
obligatio rei -[118].
Ela não desmembra a propriedade como o usufruto, não a transfere para o credor,
e a deixa subsistir intacta; somente adstringe a coisa a fornecer ao credor seu
pagamento pelo meio da venda[119]
. O direito creditório pode existir sem hipoteca, porque, independentemente
dela, os bens do devedor ficam na verdade geralmente afetados ao pagamento de
suas dívidas[120].
Por sua própria natureza a hipoteca é um direito real simplesmente acessório,
que não tem, como os principais, a estabilidade, que caracteriza o direito real
de domínio[121].
“Por toda a parte, onde a
propriedade existe, diz Du-Roi[122], vê-se
de um lado certos poderes
atribuídos à uma pessoa sobre
a coisa de outro por um contrato
nominado, e enunciando-se pelo mesmo nome da convenção, que os tem feito nascer, como na locação, comodato, depósito; ao passo que do outro lado,
a lei, ou um testamento, ou mesmo uma convenção,
mas uma convenção inominada, estabelecem sobre
as coisas outros
poderes, que recebem
uma denominação própria, e
no todo independente do acontecimento, que os faz adquirir, por exemplo,
o usufructo, o uso, a servidão[123].”
Para que esses poderes
tivessem uma completa segurança, foi mister dar-lhes
uma natureza absoluta,
e geralmente obrigatória, como tem o direito
real de domínio: porém bem se vê, que não é isto necessariamente de sua essência[124]. Não se pode dizer que existe uma causa
determinante, um fato exclusivamente produtor desses direitos reais; não se pode dizer, que a teoria
da ciência indica
a - priori - as diversas espécies
de - jura in re -, fora
das quais não possam haver outras espécies[125].
Quando as
legislações não proíbem expressamente a criação de outros
direitos reais, além dos que elas designam, e regulam, a doutrina, e a jurisprudência, inclinam-se, por deferência ao princípio da liberdade das
convenções, a admitir combinações de todo o gênero,
uma vez que nada tenham de contrário à ordem pública[126].
“A perguntar-se, diz Toullier[127], quais são os direitos
que se podem separar da propriedade perfeita, e de
quantas maneiras se pode desmembrar, deve-se estabelecer
como princípio, que cada um pode dispor
de sua propriedade da maneira mais absoluta, que pode desligar
os direitos que lhe
parecer, estender ou limitar esses
direitos, contanto que nada haja de contrario às leis, e à ordem pública;
assim, nesta matéria, segue-se o princípio geral - tudo o que não é proibido é permitido -[128].”
“Se, levando
a questão mais longe, pergunta-se quais são os modos mais usados
de desmembrar a propriedade, quais
os direitos que separam mais ordinariamente, e sobre os quais as leis tem disposições para servir de regra em falta de título
que as estabeleça, deve-se responder, que esses direitos não são os mesmos
em todos os povos, e que no mesmo povo variam
segundo os
tempos, costumes, e legislação.[129]”
O Direito
Romano, no seu u1timo estado
de desenvolvimento, admitiu
quatro espécies de direitos reais na
coisa alheia - jura in re aliena -[130]; mas a servidão, motivada pelas necessidades da agricultura, era delas a mais
antiga, e originariamente o único - jus in re aliena -, denominado por
excelência - jus in re -, em contraposição ao domínio. Foi ele o único,
à que os Romanos aplicaram por analogia as regras da propriedade, a ponto, não
obstante reputarem as servidões como coisas incorpóreas, de transportarem para
elas a ideia de posse sob o nome de - quasi possessio -, com as
consequências jurídicas da posse, os interditos, e a usucapião[131].
Do que precede resulta, que definir o - direito real - em relação ao domínio
fora dar uma
ideia falsa; pois a definição não compreenderia o definido. Defini-lo pelas faculdades de uso e gozo, como desmembradas do domínio, ou como copropriedade dividida quanto ao tempo e modo
do uso e gozo, não seria melhor expediente; porquanto
a hipoteca é um direito real, e não contém
nenhuma dessas faculdades, nem opera desmembração ou divisão alguma[132].
Desta maneira,
já que os outros caracteres não são exclusivos, não pode haver
definição que satisfaça, senão aquela que caracteriza o direito real pela ação in rem, que
sempre produz, ação que nunca pode competir ao direito
pessoal[133],
e que destaca
portanto de um modo sensível a diferença entre as duas espécies de direitos, de que se compõem toda a legislação civil. -
Jus in re est jus homini
in rem competens
, sine respectu, ad certam personam, ex quo agi potest contra quemcumque possessorem. - Jus in personam (ad rem)
est facultas competens in personam, ut aliquid dare, vel facere, teneatur [134].
Esta
definição do - direito real - tem sido censurada. Alega-se - que os direitos tem por si mesmos uma existência
própria, que os caracteriza; - que a
distinção do direito real e do direito pessoal é independente da
sua violação, e da natureza da sanção respectiva; - que nada importa, que os
façamos valer em juízo, ou em outra qualquer circunstância, por meio de ação,
ou de exceção, - nihil refert, an actione, an exceptione, persequamur.
Mas quem assinala
o direito real pela
sua ação correspondente, que em última
análise é só o que o
caracteriza Thibaut em toda a
escala de suas manifestações, nega
por ventura sua existência antes
da violação possível? Pelo contrário, toda a ação supõem um direito violado;
a violação não se
concebe, sem que o direito exista.
Não se confunda
a ação - jus persequendi
- com a sanção do direito, nem com o meio ou forma do processo. Entre o direito
abstrato criado, ou declarado, pela lei, e a sanção
do direito, há um
espaço imenso. Realizado o direito, quando impedido
pela
resistência, a ação, como medium
persequendi, é o vínculo legítimo
entre o direito
e a sanção do direito. Para haver porém o meio, o direito deve
existir antes. O direito, a ação,
a forma da ação,
são três fatos, que
a análise distingue.
O direito não pode existir
sem a ação, do mesmo
modo que a ação não existe
sem o direito. A forma
da ação porém
pode existir sem a ação, e sem o direito. Ter um direito, ter uma ação, não é o mesmo que formar uma ação, como diz Doncene[135], porque
a ação muitas vezes se propõe sem direito.
A ação é a faculdade complementar do direito, sem a qual o
direito não existiria, ou fora ilusório[136].
É um erro pensar,
diz outro Escritor[137],
que se exerce o direito real,
quando se intenta ação contra aquele que o
viola, - ou ataca.
O direito real
se exerce, quando se usa
da coisa, quando
se percebe os frutos dela, quando
dela se dispõem de um ou de
outro modo. - O carácter distintivo do direito real é
não haver em seu
exercício, do agente para
a coisa, algum intermediário
individualmente passivo. - Quando intenta-se uma ação real contra
todo o possuidor, não se exerce o direito, procura-se fazer reconhecê-lo.
Não será isto
encarar o direito real
somente em relação ao domínio? Não será confundir um direito necessário com
direitos continentes? Não
será desconhecer, que o meio
ou a forma de ação não
é o mesmo, que o direito de ação? Há direitos naturais, que a razão concebe
antes da lei,
e neste caso
está o domínio, ou a propriedade, com as justas
faculdade que lhe são inerentes. Há direitos possíveis, criados pelas convenções, pelos atos
de última vontade, pela lei[138]; e tais são os direito, reais na coisa alheia - jura in re aliena -. Para que existam esses últimos direitos, não basta, que se use da coisa alheia,
que se perceba
os frutos dela. Já observamos que essas faculdades
se exercem nas coisas de outrem sem haver direito real.[139].
Também
já observamos, que no domínio é o proprietário somente, que se acha em relação
com a coisa; e portanto a ação real não pode deixar de existir, e de
pertencer-lhe. Nas faculdades de uso, e gozo, das coisas de outrem a ação real
pode deixar de existir para o agente, visto que já existe para o proprietário.
O agente pode usar, e gozar, da coisa, mas somente com uma ação pessoal contra
o proprietário, ficando neste a ação real - adversus omnes.
Não se diz, que
o direito real é
a ação real; ou
que ele só existe quando a ação se
propõe; mas diz-se, que é direito
armado com a ação real[140].
Ora, esse direito assim provido, assim qualificado na legislação, existe
independente de sua
violação, independente da ação, que esta possa
motivar; ele faz-se valer em toda a circunstância, e por uma exceção,
mas com seu predicado o determina.
Estão
assim caracterizados os direitos reais, recaindo
sempre imediatamente - reta via - sobre as coisas (coisas
materiais), ou integralmente, ou parcialmente, por variados motivos, mas tendo invariavelmente a ação real, que é o atributo inerente a todos os existentes, e possíveis. Coisa é tudo que se distingue da pessoa[141]
separados os direitos sobre
coisas, não podem existir
outros direitos senão os relativos à pessoas, que são os direitos
pessoais.
Engendrem-se
todas as combinações possíveis, investiguem-se as variadas relações
da vida civil,
e não achar-se-ão outros
direitos que não sejam
os reais e os pessoais.
“A noção nada
tem de arbitrário, dimana necessariamente da natureza das coisas, é imutável, e se
reproduz inevitavelmente em toda a legislação. Todos os direitos
sem exceção, qualquer que
seja o modo de sua aquisição, exercício, e ação judiciária, qualquer que seja
seu objeto, vem a entrar em uma, ou na outra categoria.”[142]
A confusão dos direitos
absolutos em sua generalidade com os direitos reais, os
diferentes aspectos em que os direitos
são considerados, a flexível significação das palavras - propriedade - e
- coisa -, explicam nessa matéria
a divergência de opiniões, e aparente variedade do doutrina[143].
Diremos com o já citado Ortolan, que a divisão
dos direitos em reais e
pessoais é exata, contanto que seja
bem definida[144].
Para identificar os direitos absolutos com os direitos
reais, como tom feito alguns
escritores alemães[145], é preciso
ser infiel ao natural sentido
das palavras; e além disto ficarão
obscurecidas as noções de uma
teoria racional, impossibilitando-se a demarcação exata dos verdadeiros limites do Direito Civil. São considerados, por exemplo, direitos reais os direitos concernentes ao estado civil,
à família, e à individualidade física e moral do homem, à pretexto de que esses
direitos nos pertencem
diretamente, imediatamente, e não dependem
da obrigação ou intervenção de sujeito individualmente passivo[146].
Certamente o caráter
comum dos direitos reais,
e de todos os direitos absolutos, é sua existência independente de
qualquer vínculo pessoal; porém, se os
direitos reais são absolutos (152), não se
segue que os direitos absolutos sejam reais[147].
A espécie está compreendida no gênero, mas o gênero
não é a espécie (suprimido na 3ed)[148].
Já se disse, que a divisão dos direitos em - absolutos
- e - relativos - é feita no ponto de vista da sua - extensão -[149];
e ponto de vista da divisão dos direitos em - reais - e - pessoais
- é o do - objeto dos direitos -[150].
Não há direitos sem pessoas, não há direitos sem objeto; e nesta primeira face,
antes do trabalho analítico, os direitos absolutos são semelhantes entre si, e
até nem se distinguem dos direitos relativos. Examine-se porém quais são os
objetos dos direitos, e parecem logo diferenças essenciais.
1.º 0s objetos são corpóreos, ou incorpóreos; isto
é, caem debaixo dos sentidos, ou só podem
ser percebido pelo entendimento.
2º Os objetos incorpóreos, em um caso, não se manifestam
exteriormente, porque representam mentalmente o estado de inação necessário pra
o livre desenvolvimento dos direitos de cada um. Em outro caso, são exteriores,
isto é, condições fornecidas pela pessoa passiva do direito, e consistentes na
prestação de objetos corpóreos, ou na prestação de serviços pessoais.
Quando o objeto do direito
é incorpóreo sem manifestação
exterior, pode-se dizer, que o direito não tem objeto; pois só aparece o
sujeito ativo do direito, que livremente o exerce, sem observar-se mais nada.
Por causa disso, os escritores que temos examinado, ou não falam do objeto do
direito em tal caso[151]
ou dizem que ele se confunde com a existência da pessoa[152]
ou que são direitos sobre nossa própria pessoa[153].
Quando o objeto do
direito é corpóreos, já não aparece somente o sujeito ativo do direito, senão
também o objeto corpóreo, que lhe está imediatamente submetido de um modo mais
ou menos completo.
Quando o objeto do
direito é incorpóreo, mas com manifestação exterior da parte do sujeito passivo
do direito, o que se observa é o sujeito ativo de um lado, e o sujeito passivo
do outro lado; abstração feita da qualidade da prestação, a que o sujeito
passivo esteja obrigado.
O que resulta desta
análise é, que, fazendo-se a divisão dos direitos no ponto de vista de seus objeto,
os direitos na primeira espécie, isto é os que se confundem com a existência do
sujeito ativo, não podem entrar na divisão; mas somente os direitos das outras
duas espécies, tendo uns por objeto as coisas corpóreas, e os outros as
pessoas. No primeiro caso não há objeto, porque só aparece a pessoa ativa. No
segundo caso existe a pessoa ativa e o objeto corpóreo, mas só se olha a este.
No terceiro caso existe a pessoa ativa, existe o objeto incorpóreo, mas só se
olha a pessoa passiva, cujo fato é o mesmo objeto.
Ora, os direitos da
primeira classe são os direitos absolutos da personalidade, que desde o
princípio excluímos da Legislação Civil[154].
Os da segunda são os direitos reais. Os da terceira são os direitos pessoais.
Os da primeira classe não são os da segunda, conquanto uns
e outros
sejam absolutos, isto é, tenham a mesma extensão; porque os da
segunda olham ao objeto - res -, entretanto
que os da primeira não tem objeto exterior.
Os da primeira classe, por isso que não tem objeto exterior, são inapreciáveis, não tem valor ou preço venal, tem apenas utilidade; porque neles
funda-se o bem - ser moral e material, do homem. Os da segunda classe tem sempre um valor venal, apreciável, em
dinheiro. Os da terceira ou tem um valor apreciável, que faz parte da nossa fortuna;
ou deixam de tê-lo, e não entram no nosso
patrimônio, sendo todavia
vantagens que contribuem ao
mesmo bem - ser do homem.
Bem se vê,
que as noções
de - direitos reais - e - pessoais - está
subordinada
à dos - direitos absolutos - e - relativos
-, suposto o ponto de
vista da primeira seja a extensão, e na
da segunda o objeto. 1º Para o direito
ser relativo, isto é, para estender-se somente à pessoa, segue-se que deve ser
pessoal. 2º Se o direito real não é pessoal se é a ideia oposta, segue-se que é
um direito absoluto; porque a ideia oposta ao direito relativo é o direito
absoluto. 3º Também o direito não podia ser real, isto é, não podia dar um
poder exclusivo sobre a coisa, se não fosse - adversus omnes -, se todos
não se abstiverem de impedir, se não fosse um suma um direito absoluto.
Entretanto, se o
direito real é absoluto, o direito absoluto pode não ser real, porque não
carece da existência de uma coisa.
Não são, portanto, direitos reais os direitos absolutos
concernentes à individualidade física, e moral
do homem, e ao estado
civil, e de família. Esses direitos podem
motivar relações positivas, e desenvolver direitos relativos ou pessoais; mas é somente com
este caráter de direitos pessoais, que eles entram na esfera da legislação
civil. Isto se verifica
em dois casos:
1º Em
sua generalidade, como os direitos absolutos
da personalidade
não
manifestam ativamente, senão
no caso de terem sido violados
ou ofendidos em consequência de um delito, ou quase delito; eles dão lugar à obrigação de satisfação ou indenização de dano
causado. Neste sentido, pode-se dizer, que se resolvem em direitos sobre objetos
exteriores incorpóreos, isto é,
- a prestação necessária para satisfação do dano.
2º Como o Estado é uma reunião
de famílias, como os homens estão ao mesmo tempo na grande
associação civil, e na associação familiar; esta segunda associação tem suas relações privativas, que produzem uma certa
classe de obrigações, consistentes, já em prestações ou fatos, que não fazem parte
do nosso patrimônio, nem se confundem
com as outras obrigações[155];
já em outras prestações. que tem valor apreciável[156].
Também
se costuma identificar os direitos reais com os pessoais, dizendo-se - que os direitos pessoais existem na sociedade à respeito de todos,
do mesmo modo que os direitos reais; - que
não há um direito
mais absoluto que outro,
- que a sociedade inteira,
a massa de todas as pessoas, está sempre obrigada
à não embaraçar o gozo e
exercício do direito[157].
Temos aqui um falso aspecto
que também confunde
a matéria.
Quando os direitos pessoais
não são encarados em relação à pessoa individualmente obrigada, mas em
relação aos outros homens - adversus omnes -, eles já não exprimem a mesma
relação, a mesma obrigação. Eles são absolutos, exprimem relação diversa, já como direitos de personalidade, já como direitos de propriedade[158]. De personalidade, se os direitos
pessoais tem somente uma utilidade, mas não um preço
venal. De propriedade no outro caso, porque
já dissemos que
a ideia de propriedade é larga,
e abrange assim os direitos reais, como os pessoais, que fazem parte do
nosso patrimônio[159].
Os direitos pessoais desta última espécie, considerados como absolutos, são integrantes
do direito de propriedade. Os
direitos pessoais desta última espécie, considerados como absoluto, são uma
parte do direito absoluto de propriedade.
Por falta desta análise, sem a qual não é possível
fixar o verdadeiro valor dos sinais da
linguagem, e sondar as ideias que eles designam, e podem designar,
segundo o aspecto psicológico, comete-se o erro de alargar a esfera do Direito Civil propriamente dito, deduzindo-se consequências deploráveis[160].
Propõe-se, por exemplo, que hajam no Código Civil
títulos especiais para os direitos de - liberdade -, de - segurança
pessoal -, e de - reputação -; arguindo-se que não basta
para justificar a omissão,
existirem no Código Penal as penas, que a violação
desses direitos faz nascer. Não seria o mesmo,
se-diz, dispensar a explicação da - propriedade -; porque no Código
Penal há penas estabelecidas
para os delitos, que a violam?[161]
A censura é pouco refletida, porquanto, além dos delitos, que violam
a propriedade reprimidos na legislação penal,
há muitas outras violações da propriedade (a maior parte delas), que
não são punidas
criminalmente, que tem somente sua sanção na legislação civil,
e que portanto somente à legislação civil pertencem.
A violação
de quase todos os direitos pessoais - objetos incorpóreos exteriores -, que fazem
parte do nosso patrimônio, só dão lugar
à ações civis, e não
à ações criminais. Essa violação só pode partir da pessoa individualmente
obrigada[162].
Quanto aos - objetos corpóreos -, outra parte da propriedade, a violação dos
direitos que sobre elas recaem, produz ações civis no maior número de casos[163].
Quando produz ações criminais, a sanção não fica
completa com a aplicação da pena, falta
ou a restituição da coisa,
ou a indenização do dano
causado, o que consegue-se por ações civis[164].
Esses efeitos dimanam
da natureza das coisas, já que os delitos contra a propriedade corpórea
necessariamente o objeto corpóreo está entre o agente e o paciente do delito;
entretanto que a sanção penal é estranha ao destino desse objeto, afetando só a
pessoa. Ao contrário, nos delitos contra a personalidade, não há nada de
permeio entre o agente e o paciente do delito. Nestes delitos a ação imputável,
que os constitui, só pode ser atribuída à uma intenção malévola; ao passo que
os direitos de propriedade podem ser violados por ignorância, por simples erro[165],
e mesmo por impossibilidade da parte da pessoa obrigada.[166]
A sanção dos delitos
contra a personalidade, - contra os direitos de liberdade e segurança
- [167],
fica preenchida em muitos casos com a aplicação da pena somente. Quando não
fica preenchida, por haver dano resultante, cuja reparação é necessária, a
legislação civil tem providenciado para a satisfação desse dano. Resulta pois,
que os direitos de personalidade entram na legislação civil, tanto quanto se
faz preciso que entrem, segundo a natureza das coisas.
Sem dúvida, os
direitos absolutos de personalidade, quais são todos os que resultam do
desenvolvimento de nossa liberdade, e que tem hoje tantas denominações, carecem
de explicações ou restrições, como carecem o direito de propriedade, restrições
que os harmonizam com as exigências do bem social; mas se as explicações da
propriedade pertencem em regra à Legislação Civil; as outras entram na esfera
das leis Administrativas, e particularmente das Leis de Policia[168].
Que razão há para
confundi-las? E como se pode confundir , se a respeito da propriedade, o poder
público desce à arena da individualidade, como pessoa coletiva[169];
quando aliás, à respeito dos outros direitos procede sempre ativamente,
independente da intervenção do poder judicial?[170]
Se se deseja o reconhecimento legal dos direitos individuais de personalidade,
tão, invioláveis como o de propriedade, é coisa que se tem feito, e que se deve
fazer, por meio de simples enunciações nas Constituições Políticas[171].
Não haja distinção
entre as relações jurídicas, já do poder público com os indivíduos, já dos
indivíduos entre si; não haja distinção entre os direitos da personalidade, e
os da propriedade; não se restrinja também a significação da palavra delito;
e será impossível marcar a linha de separação entre o Direito Civil e o Direito
Administrativo, e entre o Direito Civil e o Direito Criminal.
Se, no sentido mais
filosófico, os direitos da personalidade forem considerados de propriedade[172],
seguir-se-á fazê-los entrar na órbita da Legislação Civil.
A. palavra delito
é tomada em sentido tão largo, que Bentham, por exemplo, cujos escritos abundam
em ideias tão luminosas, entendeu, que toda a legislação civil rolava sobre delitos,
direitos, obrigações, serviços, noções congênitas[173].
Em seu ensaio para distinção do penal e do civil, a mesma ideia ampla do - delito
- o induziu à reputar à lei penal como uma consequência, continuação, e
terminação da lei civil[174].
Não sendo a nossa
distinção de direitos reais, e direitos pessoais, deduzida em
consideração da personalidade ativa do direito, nenhuma consistência tem a
censura de impropriedade de expressão que se lê em alguns Escritores[175].
A personalidade ativa é inseparável de todos os diretos, e portanto está
entendido, que a denominação - direitos pessoais - só pode referir-se à
personalidade passiva. Neste aspecto objetivo o que não se pode negar é, que a
personalidade passiva aparece imediatamente nos direitos pessoais, ligada por
um vínculo especial; e isto não acontece nos direitos reais, cujos
efeitos imediatos não se exercem sobre pessoas, mas sobre coisas.
A aplicação das palavras
- direitos pessoais -, referindo-se à personalidade ativa do direito, em
contraposição aos direitos que referem-se a um objeto qualquer para o qual
nossa vontade se dirige[176],
tem o inconveniente já notado da confusão dos direitos absolutos, e até dos direitos
políticos, alheios da Legislação Civil, com os direitos pessoais que respeitam
à família. Ainda mais, ela separa esses direitos pessoais nas relações de
família dos outros direitos pessoais, que são denominados direitos das
obrigações, quando uns e outros, considerados em seu objeto, e em sua
extensão, tem precisamente o mesmo caráter[177].
Também se usa da
qualificação - direitos e obrigações pessoais - para distinguir aqueles
direitos e obrigações, que autorizam, ou ligam, certa pessoa sem respeito à posse
de alguma coisa; e neste caso a qualificação opõe-se à dos - direitos e
obrigações reais -, quando a faculdade de os exercer, ou as obrigações, são
anexas à certa coisa, e posse dela, sem respeito à pessoa que possui[178].
Esta distinção tem um aspecto particular, e de valor prático, porque tende à
fazer conhecer, que as obrigações reais transferem-se, ainda que o possuidor ou
o credor não consinta, transferidas que sejam as coisas à que elas são conexas;
ao passo que o devedor da obrigação pessoal, ainda que transfira a coisa, não
se livra, se o credor não consentiu.
Igualmente, sob
aspectos particulares, os direitos são chamados pessoais, - 1º por terem sido
concedidos à pessoa designada para pessoalmente os exercitar[179];
2º por serem inerentes à pessoa, que tenha uma certa qualidade[180];
3º por não serem transmissíveis hereditariamente[181];
4º por não poderem ser exercidos por credores em nome do devedor[182].
Ora, em todos esses aspectos, é claro, que as palavras - direitos pessoais -
são empregadas em acepção muito diferente daquela lhes pertence na
classificação, em que elas figuram por oposição aos direitos reais[183].
Aplicadas finalmente
as palavras - direitos pessoais - para designar direitos, que resultam
do que chama-se - estatuto pessoal - leis pessoais -, opostos aos
do - estatuto real - leis reais -[184],
aludem às tradições feudais, e atualmente à uma distinção do Direito
Internacional Privado, que não pode servir para dividir direitos no Direito
Civil[185].
Essa distinção é feita em relação à estatutos[186],
em relação às leis privadas de um país, que podem, ou não, preponderar em
outro, em relação ao direito como sinônimo de lei, ou complexo de leis. A nossa
divisão tem outro aspecto, considera o direito como faculdade, e não como lei.
Para os que fazem
aquela distinção a pessoa é objeto do direito (lei) ativa e passivamente. Para
nós a pessoa é abjeto do direito (faculdade) só passivamente; os objetos do
direito são as coisas e os fatos exteriores, em não exteriores, que as pessoas
devem prestar, o que compreende o - não fato -, ou - fatos negativos -.
E por último, o estatuto pessoal tratando de relações puramente pessoais
que a vontade do homem não pode o mudar, e o estatuto real dos bens que as leis
governam sem fato dos proprietários, exprimem muito menos, do que se quer
exprimir no Direito Civil[187].
Ficam assim fixadas
as noções, que regem todo o Direito Civil; resta agora desenvolver a aplicação
que fizemos, e que se pode fazer, dos princípios.
APLICAÇÃO DE PRINCÍPIOS
Sob as ideias fundamentais, que temos
desenvolvido, a - CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS CIVIS - apresenta em sua primeira
divisão duas grandes categorias, que formam sua Parte Especial. A esta Parte
Especial antecede uma Parte Geral, que lhe serve de prolegômenos.
A Parte Geral trata em dois Títulos das
- pessoas -, e das - coisas -, que são os elementos constitutivos
de todas as relações jurídicas, e portanto das relações jurídicas na esfera do
Direito Civil[188].
A Parte Especial compõe-se de dois
Livros, em correspondência com a fundamental divisão das duas categorias. O 1º
Livro tem por objeto os direitos pessoais, o 2º Livro os direitos reais.
O valor destas locuções jurídicas, cujo
sentido tanto varia segundo a necessidade ou arbítrio das aplicações, acha-se
já determinado; e conveniente será repetir, que a nossa distinção é o produto
da análise de todos os direitos possíveis na sua extensão e de seu objeto.
Direitos reais são todos os
direitos absolutos, que imediatamente recaem sobre as coisas, ou em unidade
complexa, formando o direito de domínio ou propriedade material; ou em unidade
elementar, e distribuídos por dois ou mais agentes[189].
Direitos pessoais são os que afetam uma
ou mais pessoas individualmente obrigadas, e só por intermédio destas recaindo
sobre as coisas.
Direitos reais, direitos pessoais, são os dois elementos da
propriedade, são os dois valores componentes de toda a riqueza pública, de toda
a riqueza particular.
O 1º Livro sobre os - direitos
pessoais - acha-se dividido em duas Seções.
A 1ª Seção trata dos - direitos
pessoais nas relações de família -, cujas partes constitutivas são o
casamento, o pátrio poder, e o parentesco; completando-se
pela instituição supletiva das tutelas e curatelas.
A 2ª Seção trata dos - direitos
pessoais nas relações civis -, descrevendo suas causas produtoras, que são
os Contratos e os delitos (fatos lícitos e ilícitos), e as causas de sua
extinção.
O 2.º Livro sobre os direitos reais
contém quatro Títulos, que tratam do domínio, servidão, herança, hipoteca; e um
Título final, que trata da prescrição aquisitiva (usucapião).
Esta distribuição de matérias não é a
que nosso espírito indica como mais perfeita. Nós a melhoraríamos, se na
empresa de uma legislação nova tivéssemos de escolher matérias à vontade.
O direito de herança não é direito
real, é um dos direitos absolutos. A herança é uma continuação do domínio e
direitos reais do morto, que se transmitem para seu herdeiro, ou herdeiros. A
herança é um patrimônio, uma universalidade, é a propriedade em complexo ideal;
contendo, não só os direitos reais, como os direitos pessoais, ativa e
passivamente; e desta maneira ela se resolve em quantidade pura, que pode ser
negativa, ou igual à zero. A herança portanto tem uma natureza comum, que a faz
entrar nas duas espécies de direitos[190].
O concurso de credores, para serem
pagos por um só devedor insolvável, também tem uma natureza comum[191].
Atendidos os credores reivindicantes ou separatistas ex-jure domini[192],
os credores separatistas ex-jure crediti[193],
os credores da massa[194],
é preciso regular a colisão[195]
entre credores quirografários[196]
entre credores meramente hipotecários[197],
e entre credores meramente hipotecários[198];
e a hipoteca é um direito real, de onde provém para o credor concorrente o
direito de preferência.[199]
Esta matéria porém, que deverá ser
tratada no mesmo lugar, acha-se fracionada nos dois Livros[200].
O mesmo aconteceu com a prescrição, que
em parte, como um dos meios de extinguir direitos pessoais (prescrição
extintiva), está no Tit. 4º Cap. 3º do Liv. 1º; e em parte, como meio de
extinguir direitos reais, e como meio de adquirir domínio (prescrição
aquisitiva), está no Tit. 5º do Liv. 2°.[201]
Este resultado, à que chegamos com a
rigorosa demarcação das duas classes de direitos, convenceu-nos da necessidade
de um 3º Livro, que, contendo as disposições comuns aos direitos reais e
aos direitos pessoais, se dividisse em três Títulos, o 1º para a
herança, o 2.º para o concurso de credores, o 3º para a prescrição. O Código
Civil Austríaco tem uma 3ª parte com a inscrição, que nós talvez adotaríamos em
plano completo de Legislação Civil; mas a matéria dessa 3ª parte, que se divide
em quatro Capítulos, excetuando a do 4º, que trata da prescrição de extinção e
de aquisição, é visivelmente só relativa à direitos pessoais[202].
A nossa Parte Geral se compõe de dois
Títulos, um para as pessoas, e outro para as coisas. Ora, como a
entidade ativa, e passiva, dos direitos, e o seu objeto, não bastam para
engendra-lo; como a causa eficiente é necessária, isto é, a que faz nascer,
modificar, transmitir, e extinguir os direitos, alguns Escritores adicionam
este terceiro elemento sob a denominação de fatos, fatos jurídicos,
atos jurídicos, de que tratam também na parte preliminar das matérias do
Direito Civil. Não nos conformamos com este método.
Direitos adquiridos são o objeto da
Ciência do Direito. A parte especial de um Código Civil descreve os direitos
segundo suas diferenças[203],
regula as relações jurídicas como engendradas, o que supõe os fatos, que lhes
tem dado origem; e regula também alguns desses fatos. A parte geral, ou
preliminar, não trata ainda de direitos, não trata portanto das causas que os
produzem; mas simplesmente prepara os elementos, - pessoas - e - coisas
-, que tem de ser a matéria de todos dos direitos.
Os fatos são em grande parte
acontecimentos fatais, independentes da vontade do homem. Desviados os fatos
necessários, os voluntários são lícitos ou ilícitos; e como os lícitos - atos
jurídicos - precisam de ser regulados, a matéria dos fatos deixa de ser
geral, e pertence quase toda às matérias especiais dos contratos e
testamentos[204].
Há muitos direitos, que nada tem com esses atos jurídicos, ao passo que sem
pessoa, e coisa, ao menos sem pessoas, não há direito algum.
Além de que, a natureza dos fatos é
por tal modo concreta, que de necessidade se os deve reservar para cada uma das
matérias especiais, à exemplo do que se tem seguido no plano do Direito Romano,
e de todas as Legislações. O estudo destas manifestações concretas, como
reconhece Savigny, entra na exposição das diversas instituições de direito[205];
e por certo, sendo as mais importantes as declarações de vontade nos Contratos
e testamentos, cabem melhor, quando delas se trata, as disposições sobre as
formas desses atos, suas condições essenciais, seus vícios, embora algumas dessas
disposições sejam suscetíveis de aplicação comum.
As - pessoas - são tomadas como
entes capazes de ter, e de dever, direitos; e são singulares ou coletivas.
Das pessoas singulares trata-se até o Art. 39, e nos Arts. 40 e 41 das pessoas
coletivas, que, sob o nome de universidades (universistates), a
nossa Ord. L. 3º T. 78 princ. E § 1º, e o Direito Romano, opunha às primeiras[206].
As - coisas -, na precisão da
linguagem, devem ser tomadas em seu sentido físico e natural, e como bens[207];
mas o nosso Direito, como Direito, com o seu misto de Direito Romano e de Direito
Francês, admitiu a inútil, e má, distinção das coisas corpóreas e incorpóreas[208];
e também, por extensão das leis da siza, a distinção ainda pior dos bens
imóveis por natureza, e pelo objeto à que se aplicam[209].
Será isto distinguir, as coisas, ou distinguir os próprios direitos?
Também o Direito Romano fazia distinção
entre o homem e a pessoa, não só porque além da pessoa individual existe a
coletiva, senão também porque a pessoa é a entidade considerada em seus
direitos, podendo portanto representar diferentes papéis[210];
e finalmente porque o homem podia ser
absolutamente privado da - capacidade jurídica -, ou no caso da
escravidão, ou no caso da - capitis diminutio maxima -[211].
Só as duas primeiras acepções quadram
ao nosso Direito, não a última, uma vez que se prescinda de escravos.[212]
Os homens são sempre capazes de ter direitos.
A capacidade jurídica portanto se reduz
à capacidade de obrar, só exprime um maior ou menor grau de aptidão, a
diversidade de aptidões, o que constitui o - estado das pessoas -[213].
Excluído o estado de escravidão oposto
ao de liberdade, também é de mister excluir o estado de estrangeiro em oposição
ao de cidadão[214];
e ficam-nos somente o estado de família, e todos os outros resultantes das
incapacidades de obrar, naturais, e legais[215].
O Título 1º da Parte Geral começa pelo
homem em sua vida preparatória - nasciturus, venter, qui in
utero est -[216],
regula os atos do seu nascimento, e óbito[217],
e distingue as pessoas pelos seguinte estados: - 1º, idade[218],
- 2º, família[219],
- 3º, alterações mentais[220],
- 4º, ausência[221].
As disposições relativas a cada um
destes assuntos são insuficientes, assim como as que concernem às pessoas
coletivas[222].
Os atos de nascimento, e óbito, e os de casamento, de que se tratou na Parte
Especial[223]
como matéria ligada à celebração do matrimônio, esperam a indispensável
reforma, que já em balde tentara o decreto de 18 de junho de 1851[224].
Não há entre nós caso possível de
privação de direitos civis[225],
ou seja pela perda da qualidade de cidadão brazileiro, ou seja por efeito de condenações
judiciárias[226].
Supor atualmente um direito Civil de pura nacionalidade[227],
negar direitos civis aos estrangeiros[228],
falar em morte civil[229];
é conceber um quimérico estado de coisas, que tradições do Direito Romano[230],
reproduz más teorias do direito francês[231];
mas que nada tem de semelhante com a realidade da nossa vida civil[232].
São aberrações, como diz Savigny, à que sempre conduz uma aplicação inábil de
fatos históricos mal compreendidos[233].
As - coisas -, em seu sentido
largo e antinatural, porém designando mais particularmente os objetos
materiais, são consideradas em si mesmas, e depois em relação às pessoas, ou
antes em relação ao direito real de domínio[234],
e outros direitos reais[235].
Neste segundo aspecto elas se-distinguem: 1º, em coisas do domínio nacional (Arts.
52 a 59 Consolid.); 2º, em coisas do domínio particular (Arts. 62 a 7.5
Consolid.).
Classificamos as coisas do domínio
nacional, isto é, do - domínio eminente da soberania - (Not. ao Art. 52 Consolid.), e o-fizemos do seguinte modo :
1.º, coisas do uso publico (Art. 52 Consolid.), e o fizemos do seguinte modo:
1º, coisas do uso público (art. 52, § 1º Consolid.); 2°, coisas do
domínio do Estado (Art. 52 § 2º Consolid.); 3º, bens da coroa (Art. 52 § 3º
Consolid.); definindo em seguida, nos termos da legislação atual, algumas das
espécies, que entram nestas três classes (Arts. 53 a 59 Consolid.).
Esses bens, e, mais propriamente, os
bens do domínio do Estado, depois da modificação política do Ato
Adicional de 1834, fracionaram-se, e tiveram a peculiar denominação de - bens gerais -_oposta à dos - bens
provinciais -, e - bens municipais -. Cumpria portanto distingui-los
(Arts. 60 e 61 Consolid.), posto que, para não romper o laço da integridade
nacional, é de mister que se os não desligue do grande domínio da soberania[236].
As -
coisas do domínio particular - não são hoje divididas senão em relação a
enfiteuse, com as denominações de - bens allodiaes e enfitêuticos (Art.
62 Consolid.), visto ter cessado a outra limitação, que resultava dos vínculos
(Arts. 73 a 75 Consolid.).
Não contemplando o direito real da
enfiteuse como distinto jus in re entre os outros direitos reais do Liv.
2º, e só tratando dele como contrato de aforamento (Arts. 603 a 649 Consolid.) (suposto seja possível[237]
também estabelecê-lo por disposição testamentária), imitamos o Direito Romano[238],
e os glosadores. Em verdade, pouco falta ao enfiteuse para ser completo
domínio; e com razão é ele reputado como se fosse o direito real de domínio,
formando porém a espécie do - domínio útil -, ao lado da outra espécie
do - domínio direto -[239].
Os - direitos de família -
acham-se no Livro 1º que trata dos - direitos pessoais -, e na Seção 1ª
desse Livro, a qual se inscreve - dos direitos pessoais nas relações de
família -. Por esta maneira, estão separados estes direitos pessoais dos
outros direitos pessoais de que trata a Seção 2ª do mesmo Livro, e onde se vê a
inscrição diversa - dos direitos pessoais nas relações civis -. Há nisto
uma inovação, que é só nosso dever justificar.
Observamos anteriormente[240],
que, na exposição do Direito Romano, a opinião mais geral compreende sob o nome
de pessoas os - jura potestatis -, que são os direitos de família[241];
e sob o nome de coisas abrange, não só os direitos pessoais (obligationes),
como os direitos reais (jura in re).
Cumpre porém advertir, que,
recorrendo-se à própria fonte, esses direitos de família não são expostos como
formando uma parte bem estremada, mas justamente com a doutrina do - status -;
isto é, da natureza, e capacidade jurídica das pessoas, o que parece ter sido
um preliminar. Este é o método das Institutas[242].·
Este é o método dos Códigos modernos[243].
O Código Civil do Argovia, que em outro lugar indicamos, como denotando
novidade de plano, também envolve a teoria geral das pessoas com os direitos pessoais
nas relações de família[244].
Tem-se confundido a parte geral ou
elementar do Direito Civil com a parte especial e orgânica. Os direitos existem
por causa das pessoas, e onde não há pessoas não pode haver questão de direitos[245].
Deve-se tr11tar primeiro, e separadamente, dos dois elementos dos direitos - pessoas
- e - coisas -, já que a sua existência deve ser suposta para todos
os direitos. Esta é a ordem das ideias, e se ela se desconhece, envolvendo-se
em parte o direito organizado por com o direito
por organizar, então cumpre logo tratar de todos os direitos, porque
todos os direitos são das pessoas[246].
Os Escritores alemães, adotando a
expressão - direitos pessoais - para designar os direitos nas relações
de família[247],
não a aplicando nunca aos direitos pessoais nas relações civis (obligationes),
dos quais tratam em uma subdivisão como parte dos direitos que chamam - patrimoniais
- ; não deixam todavia de conhecer, que o sistema romano, e o método usual dos
Códigos, não devem ser adotados. Eles tratam primeiro das pessoas em geral em
uma Parle Preliminar, e dela destacam os direitos de família, objeto de um
livro distinto na Parte Especial[248].
Que a denominação - direitos
pessoais - é aplicável aos direitos de família, não é pois, duvidoso. Que
ela também é aplicável ao que na linguagem técnica da Legislação Romana
chama-se -, vemos nós claramente, e sem medo de errar. Se a essência das
obrigações está em adstringir o ente passivo dos direitos, esses direitos são
pessoais. Se os direitos nas relações de família são pessoais, é precisamente
porque ligam do mesmo modo, porém com mais intensidade, o ente passivo do
direito[249].
A diferença entre uns e outros só consiste no grau de intensidade, na maior ou
menor eficácia do vínculo[250].
Não se pode dizer, que os direitos de
família são pessoais, porque só tem por objeto um certo número de ações,
ou prestações, que deve executar a pessoa sujeita. Não se pode dizer também,
que não se referem a um objeto qualquer, para o qual nossa vontade se dirige.
Estas razões não satisfazem.
Em primeiro lugar, há muitos diretos
nas relações de família, que dizem respeito aos bens[251].
Em segundo lugar, fora das relações de
família, há alguns direitos, que tem igualmente por objeto ações e prestações.
Estas prestações só se distinguem das outras, além da menor força do vínculo,
em que todas tem um valor pecuniário, que faz parte do nosso patrimônio[252].
Isto mesmo tem reconhecido os
Escritores alemães, empreendendo desligar dos direitos de família aqueles, que
dizem respeito aos bens[253]
Savigny distingue o - direito de família - puro do - direito de
família aplicado -[254].
E não sendo possível, sem grande inconveniente, levar à efeito a separação,
eles tratam de todos os direitos da família depois dos direitos reais, e dos
direitos pessoais[255].
O próprio Savigny, primeira autoridade
nestas matérias, não deixa de justificar o método que havemos adotado. Quanto à
posição da pessoa investida de um direito para com as outras pessoas, ele
observa, que ora seu direito liga todas as pessoas estranhas, e ora não liga
senão indivíduos determinados. Sob este ponto de vista, pareceu-lhe que as
instituições do direito deveriam ser assim classificadas[256]:
1º Para com todos os homens, - os
direitos reais, e o direito de sucessão.
2º Para com os indivíduos determinados,
- as relações de família, e as obrigações.
Eis confirmada a nossa divisão em - direitos
reais - e - direitos pessoais -, pois que na primeira categoria
entra o direito de sucessão, e na segunda entram os direitos pessoais nas
relações de família, e os outros direitos pessoais. As relações de família, do
mesmo moda que as obrigações, dão-se de indivíduos para indivíduos determinados[257].
Mas o sábio Escritor não atribui à esta
classificação a verdadeira importância e supremacia, que lhe competem; antes
considera a relação de direito, no aspecto em que a encaramos, como uma relação
secundaria[258].
Repugna-lhe envolver os direitos de família com as obrigações, cuja analogia,
diz ele, é acidental e exterior, mas não uma afinidade real.
Muitas diferenças por certo a análise
descobre entre as relações de família, e as outras relações de indivíduo para
indivíduo, quando se as estuda em sua essência, e em todo o seu organismo[259];
mas, quanto à manifestações exteriores, e
consideradas no ponto de vista do seu objeto, e de sua extensão,
não é possível contestar, que os direitos de umas e outras funcionam com o
mesmo caráter. Não fazemos questão de outras analogia e diferenças em geral;
elas podem variar, segundo a ideia que as suscita. Sustentamos somente que a
mais importante das diferenças é. a que deter. mina a grande divisão dos
direitos em reais e pessoais.
Este sistema, que não quer subordinar a
uma ideia superior de gênero os direitos de família e os outros direitos
pessoais, classificando aqueles em uma divisão isolada, ressente-se em demasia
das noções do Direito Romano sobre os jura potestatis -, noções que em
seu primitivo rigor mostram-nos um poder absoluto, um poder que não é direito,
e que nada tem de aplicável à família da civilização moderna.
A toda diferença, que existe, e se
queira atualmente achar, e que nós até certo ponto não desconhecemos, pensamos
ter atendido, uma vez que, divididos os direitos em reais e pessoais,
os direitos de família aparecem como espécie na subdivisão dos pessoais.
São de caráter tão oposto os direitos
pessoais nas relações civis (obligationes), e os direitos reais que, na
aplicação do princípio classificador, os Escritores alemães deixam de ser
consequentes. Todos eles colocam, como já notamos, os direitos de família em
uma só divisão principal, não obstante conhecerem que, além do direito de
família puro, há o direito de família aplicado que entra na divisão dos
direitos patrimoniais[260].
Alguns tratam dos direitos reais, e das obrigações, também em duas divisões
principais, e como se não fossem espécies de um gênero.[261]
Desta maneira, carecemos nós de suas
divisões principais, 1º direitos reais, 2º direitos pessoais; e
subdividimos estes, fazendo aparecer os direitos de família como espécie de um
gênero. Eles porém vem à carecer de três divisões principais, e estas, só pela
simples razão do número não se prestam à verificação lógica da fórmula
negativa.
E como admitir-se, que seja mais
importante a diferença dos direitos derivada da ideia de patrimônio,
ideia que falha em sua aplicação, do que a diferença que considera os direitos
pelo seu modo de ação e virtude funcional? A ideia de patrimônio, despojada do
seu caráter de universalidade, da sua unidade representativa da unidade da pessoa,
decomposta em suma em seus dois elementos constitutivos, perde
inquestionavelmente todo o seu valor jurídico[262].
Alguns Códigos, em acordo com a opinião
mais geral[263],
que retificou o método efetivamente seguido nas Institutas, classificação,
conforme também já notamos, as duas categorias direitos, excetuados os de
família, como sendo parte de um todo homogêneo, ao qual, do mesmo modo que no
Direito Romano, chamaram - direito das coisas -; e então os direitos
pessoais nas relações civis tomam o nome de - direitos pessoais sobre as
coisas -, em oposição aos - direitos reais[264].
E não será isto reconhecer, que, além desses intitulados direitos pessoais
sobre as coisas, há ainda outros direitos pessoais?
Que essa denominação - direitos
pessoais sobre as coisas - é sumamente defeituosa, demonstra-se por mais de
uma razão:
1º - Porque dá a perceber com exatidão,
que nas relações de família não há direitos pessoais sobre as coisas;
2º - Porque altera a índole do dos
direitos pessoais, em que não se olha senão à pessoa como se fosse objeto do
direito, e não o próprio objeto ou fato, que pode referir-se tanto a uma coisa
propriamente dita, como a um serviço;
3º - Porque dá consistência à má
nomenclatura de coisas corpóreas e incorpóreas;
4º - Porque, ainda mesmo que se
referisse às coisas em seu sentido próprio e natural, há muita diferença entre
a relação imediata e próxima das coisas nos direitos reais, e a relação
mediata e remota nos direitos pessoais;
5º - Porque, uma vez admitido o largo
sentido da palavra coisas, as prestações de fatos nas relações de família
entram na generalidade da classificação.
Passemos agora à outra inovação do
nosso plano, que nos incumbe também justificar, e que felizmente está protegida
pela suprema autoridade do admirável Escritor, que tantas vezes havemos
invocado[265].
No Livro 1º Seção 2ª, que trata dos - direitos pessoais nas relações civis -,
achar-se-á o Tit. 3º onde promiscuamente consolidamos as disposições sobre o - dano
-, e sobre o - esbulho -, como matérias análogas, isto é, como fatos
ilícitos, de que nascem as obrigações e direitos pessoais[266].
O esbulho é uma privação da posse, e aí
se nos apresenta a célebre questão da natureza da posse, e da sua qualificação
como jus in re, ou jus ad rem, isto é, como direito real ou
direito pessoal. Esta questão famosa demanda uma solução peremptória
para todos aqueles, que, como nós, adotaram o princípio classificador dos
direitos por seu objetos e extensão.
O Direito Romano estabelece quanto à
posse, como faz em relação à propriedade, o modo de adquiri-la e perdê-la[267]. Ele distingue a posse e a detenção[268],
e não a considera somente como estado de fato, que corresponde à
propriedade como estado de direito; mas como condição de direitos
particulares, e tal é o jus possessionis[269].
Ninguém pode comprar sua própria coisa[270],
ninguém a pode furtar[271];
e o mesmo acontece quanto aos Contratos de locação, depósito, comodato, e
precário[272].
Excetua-se entretanto esta regra, quando o nu proprietário se considera em
relação à posse, que pertence à outro. Concebe-se então a emptio
possessionis[273],
conductio possessionis[274],
precarium possessionis[275];
e por analogia possessionis depositum, possessionis comodatum. Também se
concebe o furto da propria coisa[276].
Além disto, tantas vantagens ou cômodos
se tem atribuído à posse[277],
tanto se tem escrito, e tão vivo tem sido o debate, que há sobre esta matéria
uma prevenção desfavorável, como se ela envolvesse uma dificuldade invencível.
Alguns colocam a posse no
direito das coisas, ao lado do jus in re e do jus ad rem, como
uma parte principal e separada. Outros tratam da posse na parte geral do
sistema, como se ela fosse mais geral do que qualquer outro direito. E muitos
reputam a posse como um jus in re, ou propriedade provisória a
par do domínio, e lendo os interditos como meio provisório de reivindicação[278]
O Direito Canônico, com amplitude que deu, mais tem contribuído para confundir
esta matéria[279].
A ideia da posse, como tendo no sistema
do direito um lugar especial e distinto, nós a restringimos aos interditos
possessórios somente; e estes interditos, ou ações possessórias nós
reputamos como derivados de obrigações ex delito, que pertencem à
classe dos direitos pessoais[280].
Em substância, como este trabalho o requer, são estas as nossas razões.
A posse faz um papel muito interessante
na cena das relações jurídicas, e cumpre examinar suas diferentes
manifestações. Elas reduzem-se ao seguinte:
1º - A posse, como modo de adquirir
domínio na ocupação das coisas sem senhor - ocupatio rei nulius -[281];
2º - A posse, como modo de adquirir
domínio na tradição das coisas, quando feita pelo proprietário legítimo - traditionibus
dominia rerum, non nudis pactis, transferuntur[282];
3.º A posse - civilis possessio -[283],
como um dos elementos da prescrição adquisitiva (usucapio) na tradição
feita pelo que não é proprietário legítimo - traditio a non domino -;
e constituindo a propriedade putativa, que é protegida pela ação
publiciana[284];
4º A posse, separada do domínio,
e protegida pelos interditos ou ações possessórias[285].
Nas três primeiras manifestações a posse
entra indubitavelmente na classe dos direitos reais, pois que
pertence à teoria do domínio; e quanto à esta posse é obvio, que não cabe
questionar, se ela é, ou não, um direito, e se constitui um direito real.
Quanto aos casos da - ocupatio -,
e - traditio -, a posse é começo e consequência do domínio; mas não é o
motivo da aquisição do domínio. E a principia (palavras de Savigny) no momento
em que o domínio se adquire. A posse deve ser legítima, não é legitima
sem justo título[286];
e o domínio pressupõe a coexistência destes dois elementos[287].
Quanto ao caso da - usucapio - a
posse, como produtiva da prescrição aquisitiva, defendida pela ação publiciana,
vale tanto como o próprio domínio; é um domínio nascente e presuntivo, que o
Direito considera como verdadeiro domínio[288].
Ora, se esta posse da prescrição só por
si não produz seu efeito, se deve ser acompanhada de justo título, e boa fé[289],
é certo, que não constitui direito, sendo apenas uma das condições do direito.
Fora tão absurdo perguntar neste caso se a posse é um direito, como perguntar
se o justo título é um direito, ou se o é a boa-fé. Seria igual absurdo,
em relação ao domínio verdadeiro, perguntar se o título somente é um direito,
ou somente a tradição.
Temos, em última análise, a posse dos
interditos, e sobre ela versa a questão; porque só neste caso a posse isolada,
ainda que injusta, toma o caráter de direito.
“A posse, diz o profundo Savigny[290],
mostra-se primeiro como um poder de fato sobre uma coisa, consequentemente como
um não-direito (diferente do delito), alguma coisa enfim de completamente
estranho ao direito. Entretanto ela é protegida contras certas violações, e
para assegurar esta proteção, se tem estabelecido regras sobre a aquisição e
perda da posse, como se ela constituísse um direito. Dar o motivo de tal
proteção, e desta assimilação da posse a um direito, tal é a questão.”
“Acha-se este motivo na íntima
conexão, que existe entre o fato da posse, e o possuidor. O respeito devido à
pessoa deste reflete indiretamente sobre o fato. Fica assim o fato ao abrigo
dos atos de violência, porque estes alcançariam ao mesmo tempo a pessoa.”
Não se viola em tal caso um direito
independente da pessoa; há porém na posição da pessoa alguma coisa de mudado em
seu prejuízo, e o mal que lhe é causado pela violência não pode ser
inteiramente reparado senão pelo restabelecimento, ou proteção deste estado de
fato, que a violência tem alterado. Tal é a verdadeira causa das ações
possessórias.
Em verdade, examinada a natureza dos
interditos possessórios, pelos quais se protege a posse, vê-se logo, que a
violação desta não é uma violação material do direito, como se fosse uma
propriedade presuntiva. O caráter comum de todos os interditos possessórios é a
condição de um ato, que já por sua forma é iníquo. E como, de outra maneira
poder-se-ia compreender, que a posse, independente mesmo da sua legalidade,
viesse a ser base de direitos?
Quando o proprietário reivindica o que
é seu, indiferente será indagar como o réu teve a posse. Ao contrário, quem tem
a simples posse de uma coisa não tem por este fato algum direito à detenção;
tem somente o direito de exigir, que nenhuma violência lhe seja feita no quod
interest relativamente à posse.
Ora, além de que todo o interdito é
pessoal de sua natureza[291],
conclui-se da análise do fato da posse, no ponto de vista em que ela tem no
sistema em lugar próprio, que os interditos possessórios não são mais
que ações derivadas de obrigações ex delicto. Eis o motivo, que
levou-nos à tratar do esbulho juntamente com o dano, e na Seção 2ª do Livro lº
que se inscreve - dos direitos pessoais nas relações civis -.
Observe-se ainda, como, por ocasião
desta matéria, o sábio Savigny vem socorrer-nos na confirmação do método, que
havemos adotado.
“Aqueles, que dividem o direito, de
uma maneira geral em direitos reais e direitos de obrigação, são por isso mesmo
forçados a separar a posse de todo o direito real; e aqueles, que rejeitam esta
divisão, devem procurar no Direito um lugar particular para todos os direitos
de obrigação; e esse lugar será precisamente o da posse.”[292]
Estas ideias tem sido sem vantagem
combatidas, e em vão se objeta com o lato sentido da palavra delito, dizendo-se
que não ha ação, que não nasça do delito. Tínhamos já notado[293],
que, sem restringir-se a significação da palavra delito, não seria possível
traçar a linha de separação entre o Direito Civil, e o Direito Criminal.
Fixemos agora esta noção.
1ª significação da palavra delito -
toda a violação de direitos.
2ª significação - toda a violação de
direitos com intenção malévola.
3ª significação - toda a violação de
direitos com intenção malévola, reprimida pelas leis penais.
4ª significação - toda a violação de
diretos com intenção malévola, reprimida pelas leis penais com penas
correcionais. Esta última significação é alheia do nosso Direito, e da teoria
da ciência; pertence toda ao Direito Francês[294].
A primeira acepção é amplíssima, e,
confrontada com as duas que seguem em escala descendente, serve para no Direito
Civil estremar as obrigações ex delito de todas as outras obrigações dos
contratos e quase-Contratos. As outras duas acepções separam o Direito Civil do
Direito Criminal[295].
O Direito Civil trata somente do delito
pelo lado da reparação do dano causado, ou o delito seja reprimido pela
legislação penal, ou não seja. Se há uma pena decretada pela lei penal, o
delito é de Direito Criminal. Se não há essa pena,o delito é de direito civil.
Se, em relação à natureza das ações
possessórias como ações derivadas de obrigações ex delito, prova alguma
coisa o largo sentido da palavra - delito -; certamente prova de mais,
pois que tende a destruir uma diferença essencial, qual a que distingue a
classe particular das obrigações nascidas de fatos ilícitos da outra
classe de obrigações derivadas dos fatos lícitos.
A violação de um direito (delito
lato sensu) é a causa imediata e próxima de todas as ações; mas a violação
do direito com intenção perversa (delito stricto sensu) não é a causa
primeira de todas as ações.
Nas ações derivadas ex contractu temos
a inexecução da obrigação, e nada mais. Nas ações oriundas ex delito, temos:
1º - a inexecução da obrigação de reparar o dano ocasionado por um delito, 2º -
a violação de um direito preexistente, que esse cometido delito pressupõe.
Antes da transgressão do contrato só
existe o contrato, e antes deste não existe direito algum. Antes da inexecução
da obrigação de reparar o dano existe o delito, e antes do delito existe outro
direito violado. Basta refletir nisto. Cumprido o contrato, não há delito
algum. Cumprida a satisfação do dano resultante do delito, tem existido o
delito, que produziu essa obrigação. O delinquente pode reparar o dano causado,
independentemente de ser demandado pela ação civil[296].
Se se objetasse também com a extensão,
que por Direito Canônico se tem dado aos interditos possessórios, como ações
que podem ser intentadas contra todo o possuidor, extensão que só provém de um
abuso de interpretação[297],
demonstrou Savigny brilhantemente, que a teoria do Direito Romano em nada foi
ab-rogada pelo Direito Canônico, cujos novos princípios careceriam até de
sentido, quando não se os considerasse como um aditamento a essa teoria, cuja
excelência dimana da natureza das coisas.
Em verdade, o Direito Romano não dava
ação contra o terceiro possuidor, ainda mesmo que este houvesse recebido a
coisa do autor da violência e com ciência do esbulho[298].
Mas Inocêncio III, entendendo que a alma desse terceiro corria tanto risco como
a do esbulhador, contra ele também permitiu que se propusesse a ação[299].
Há nisto, como observa Savigny, uma extensão do interdito de vi, porém
de pouca importância[300].
Dados estes esclarecimentos, resta-nos
ainda demonstrar, que a divisão cardeal dos direitos pessoais e direitos
reais, é de valor verdadeiramente prático; e que também a reclamam
imperiosamente as condições econômicas da civilização moderna.
IMPORTÂNCIA PRÁTICA
Incumbe ao legislador considerar os
direitos em todas as suas fases; e por certo a que mais o deve interessar é a
da sua violação. O que seria o direito, se a sanção da lei não assegurasse seu
livre desenvolvimento? Não partimos de um estado negativo, ou de injustiça; mas
da vida real da humanidade, onde a possibilidade da violação do direito reclama
uma série de instituições protetoras. Se a violação não fosse possível, a lei
seria inútil.
Também nunca o direito manifesta-se
mais claramente, do que quando, denegado e agredido, a ação aparece, e em
virtude dela a autoridade judiciária o reconhece, proclama, e coage a
respeitá-lo. Antes da violação do direito pessoal, já existe um vínculo
positivo, que na ação produz seu previsto efeito individual. O direito real
porém, como que dorme, para ostentar depois, na ofensa que o provoca, todo o
poder de seus efeitos[301].
Pela observação destes efeitos o legislador atento equilibra os variados
interesses da vida social. Pela força destes efeitos o Jurisconsulto prático
mede nos direitos o seu alcance possível, e não acha neles outro caráter mais
importante. As ações são seus instrumentos de trabalho.
Entre tantas classificações e ensaios,
qual será a classificação de direitos, que se torna mais sensível na cena
judiciária, e que na ciência prática corresponde às ações de que se pode fazer
uso, compreendendo-as todas? Não há outra, senão a dos direitos pessoais,
e direitos reais. Para os primeiros as ações pessoais. Para os
segundos as ações reais.
Nas Institutas L. 4º Tit. 6º § 1º - de
actionibus - observa-se, que a ação que tem por objeto o - jus in re
-, e que se chamou - actio in rem -, foi claramente oposta à ação que
tem por objeto o reconhecimento de uma obrigação - actio in personam -;
aí se diz, que é esta a divisão principal de todas as ações[302] Forçoso é porém confessar, quando se estuda o
Direito Romano, que tal divisão de ações não foi cientificamente estabelecida,
em razão de alguma diferença anteriormente observada nos direitos.
A palavra - jus in re - não foi
empregada no Direito Romano para designar algum gênero particular de direitos[303].
O Brachylogo[304]
foi a primeira obra, onde essa expressão parece ter sido aplicada para
distinguir uma classe de direitos, em oposição à outra classe, que chamou-se - jus
in personam - ou - ad rem -[305].
A divisão das ações - in rem e in personam -só tem seu apoio na
diferença das fórmulas, por onde tais ações se enunciavam; e desta maneira a
oposição entre as fórmulas correspondia a uma oposição entre os direitos
reclamados.
Na - actio in rem - o direito,
que fazia objeto do litigio, era enunciado - quasi subjectio rei -, e
por conseguinte sem que se-nomeasse quem quer que fosse obrigado em razão do
direito reclamado[306].
Na - actio in personam - o direito reclamado era exprimido quase officium
personae -. Se a fórmula portanto era somente o característico da - actio
in rem -, não bastando que se pusesse em questão um jus in re, a
diferença das ações era ilusória, era simplesmente uma circunstância exterior
do processo formulário, e não a designação de uma qualidade inerente à natureza
das ações.
Na definição da actio in rem,
segundo o antigo Direito Romano, parece, que não se teve em vista senão a ação
do domínio - vindicatio -[307].
· Só depois a ação do domínio estendeu-se aos direitos análogos, como a
herança, servidões, direito de superfície, enfiteuse, e hipoteca. Os interditos
possessórios não entraram na divisão[308],
e também não entraram as ações prejudiciais - prejudicia. -
Quanto à estas se diz, que se assemelham às ações in rem; mas não se diz
que pertençam a este gênero de ações[309].
Ainda mais, em alguns fragmentos
falou-se de ações pessoais in rem scriptae; e daí resultou considerar-se
como ações pessoais algumas, que competem contra todo o possuidor[310];
e como ações reais outras, que se diz só competirem contra certos
possuidores, e cujo fundamento não é só o jus in re[311].
Além disto há as ações, que se tem chamado - mixtas -[312].
Essas denominações de ações, que
passaram para as legislações e jurisprudência modernas, e principalmente a
analogia da actio in rem - com os - prejudicia -, tem ocasionado
a confusão dos direitos reais com os direitos absolutos, tem
alterado as noções fundamentais, e dão o motivo de não ter prevalecido a
classificação fundada na diferença capital dos direitos reais e dos direitos
pessoais.[313]
Dissipem-se ideias tradicionais,
medite-se livremente sobre a natureza dos direitos, apliquem-se os princípios
precedentemente fixados; e ver-se-á, abandonado como tem sido o processo formulário
dos Romanos, que não há outras ações possíveis, na esfera do Direito Civil
propriamente dito, senão as ações reais e as ações pessoais, que
precisamente correspondem às duas grandes categorias dos direitos reais
e dos direitos pessoais. A ação nasce do direito, dele descende, e nele
se confunde. Em uma palavra, a ação é o direito posto em movimento[314].
Os interditos que protegem a
posse são hoje as ações pessoais possessórias, de que já falamos[315].
As ações prejudiciais estão reduzidas à meras habilitações, alegações de
legitimações de partes, questões de Estado, e quando muito à ações preliminares
de outras ações[316].
As ações in rem scriptae, e as chamadas ações mixtas, são tão
impossíveis, como impossível fora a existência de direitos mixtos, isto é, que
fossem a um tempo reais e pessoais[317].
Esta aliança, ou mistura, de realidade
e personalidade, não pode compreendida, uma vez que os dois caracteres, que
constituem de um lado o direito real, e de outro lado o direito
pessoal, são entre si contrários e incompatíveis. A situação possível, e
mesmo muito frequente, é só a da pessoa, que tem ao mesmo tempo, em relação a
um objeto, um direito de propriedade, e também um direito de crédito; e debaixo
deste ponto de vista unicamente é que poder-se-á dizer, que existem ações
mixtas, ou pessoais in rem scriptae[318].
Meditadas as diferentes hipóteses
dessas ações assim denominadas, chega-se a conhecer, que nelas se contém, não
um só direito, ou uma só ação, cujo caráter seja duplo e complexo; mas uma
realidade dois direitos, e duas ações, que simultaneamente pertencem a mesma
pessoa em relação a mesma coisa[319].
O caráter principal, e essencial, do direito deve ser o predominante, e este
determina a natureza da ação.[320]
RELAÇÕES ECONÔMICAS
A civilização moderna, que tanto se
distingue por seus admiráveis progressos na carreira dos melhoramentos
materiais, alimenta-se com a livre circulação dos capitais, reclama
imperiosamente o movimento constante de toda a sorte de valores. E quais os
fenômenos, que se manifestam na realização desse destino providencial?
As transações, que se operam seio da
sociedade, distribuem os instrumentos da produção por todos os ramos de
atividade; os capitais aproximam-se a todas as necessidades, para que tenham
uma direção mais fecunda; e o poderoso motor dessa rotação contínua é o - crédito -. Com
seu impulso os capitais fixos transformam-se em capitais rolantes[321],
e o comércio e a indústria reproduzem quotidianamente suas forças.
Crédito pessoal, crédito real, são as duas potências paralelas
às duas grandes classes de direitos, que constituem toda a riqueza nacional. O
primeiro funda-se na confiança pessoal, e, por isso mesmo que prescinde de uma
garantia exterior, funciona ordinariamente com a propriedade móvel, que
segue a pessoa, e presta-se a uma circulação rápida[322].
O segundo, visto que só se refere a objetos materiais, sem lhe importar a
qualidade da pessoa, tem por objeto a propriedade imóvel, a grande
propriedade, a propriedade por excelência, cuja natureza intrínseca só lhe pode
fornecer condições apropriadas.[323]
Com o primeiro o comércio e a indústria
florescem em quase todos os países. Sem o segundo a agricultura definha, e luta
com os embaraços mais graves. Nosso país é agrícola, e o desenvolvimento de
seus grandes recursos naturais, a mobilização do seu solo[324],
a circulação dos imensos valores, que ele encerra, eis o mais importante
problema a resolver.
O crédito pessoal, - crédito
móvel, não tem objeto intermediário, é de pessoa à pessoa, nada teme dos direitos
reais, posto que lhe possam ser bem funestos; e particularmente reclama uma
legislação convinhável, que facilite, e assegure, a pronta execução dos
contratos[325].
O crédito real, - credito imóvel -, repousando sobre a propriedade
territorial - solum et res soli -, que é a verdadeira sede dos direitos
reais, tudo deles receia, e carece de que essa propriedade seja constituída e
regulada pelo modo mais conducente a não comprimi-lo, senão também a
desenvolvê-lo e a facilitá-lo[326].
É assim que a teoria dos direitos
pessoais, e direitos reais, também aparece na cena econômica. É
assim que ela corresponde à teoria do crédito. É assim que o Direito Civil[327]
se liga à ciência das riquezas. E pelo meditado estudo destas combinações é que
o país tem a esperar grande benefício do Código Civil, que a sua magna Carta
lhe há prometido[328].
As relações humana, que na esfera da
Ciência Jurídica são consideradas fatos, a que cabe aplicar uma regra de
direito, mostram-se na esfera da Ciência Econômica como veículos de produção,
distribuição, e consumo, de riquezas, - como trocas de objetos da natureza
física, sem as quais não pode o homem satisfazer suas necessidades, nem
desenvolver as aspirações do seu gênio.
Nos rudimentos do comércio essas
transações começam por trocas do supérfluo; passam a ser depois, pela
ideia da divisão do trabalho, que as multiplica, trocas diretas de
produtos; convertem-se progressivamente, com a introdução da moeda, em trocas
indiretas; e recebem finalmente um novo e soberano impulso com o
desenvolvimento da noção do crédito, isto é, com a expansão da confiança nas
pessoas, e nas coisas, elementos de todas a relações.[329]
Se o crédito pessoal pressupõe o
vínculo individual das obrigações, o crédito real não se concebe sem a ideia
dos direitos reais, que afetam imediatamente a propriedade imóvel.
Quanto a esta última classe de direitos, nós já vimos que a duas manifestações
se deve atender, uma necessária, que é a do domínio - jus in re propria -,
e outra contingente que é a dos mais direitos reais - jura in re
aliena -[330].
Agora quanto ao crédito real, atenda-se também em primeiro lugar ao
domínio; em segundo lugar aos outros direitos reais, e sobretudo ao da
hipoteca. Eis a mais alta teoria do crédito privado[331].
Desta maneira, nós partimos a priori
da noção dos direitos reais, e achamos a do crédito real em sua
maior generalidade, e com a possibilidade de todo o seu desenvolvimento desde a
infância das sociedades até o grau mais aperfeiçoado.
Não é porém assim, que os Economistas a
consideram. Eles tomam o crédito real como sinônimo de confiança em relação aos
empréstimos caucionados por hipotecas[332],
e limitam ainda mais o sentido da expressão, aplicando-a particularmente à
criação de estabelecimentos bancários destinados facilitar tais empréstimos[333].
Desta outra maneira, e partindo a posteriori dos empréstimos
hipotecários, chega-se às mesmas ideias, e as consequências são as mesmas.
Dada a noção da hipoteca
convencional, como base do crédito real, e para que a confiança do
credor não seja ilusória, isto é, para que ele tenha a certeza de ser pago pelo
imóvel hipotecado, duas condições são necessárias:
1º Que esse imóvel pertença ao devedor,
e seja disponível em suas mãos.
2º Que o valor desse imóvel, vencido o
prazo do pagamento, não seja distraído, diminuído, ou alterado, por motivo de
encargos, que, desconhecidos ao tempo do Contrato, não tivessem podido entrar
nos cálculos do credor[334].
Ora, para que seja satisfeita a
primeira condição, a ideia da hipoteca mostra-se logo como essencialmente
ligada à ideia do domínio, e sua transmissão. E para que se preencha a segunda
condição, a hipoteca nos conduz também à consideração dos direitos reais de
igual natureza, e de todos os outros direitos reais. Eis porque, diz muito bem
Troplong[335],
o que repetem todos os Escritores Franceses[336],
não se pode conceber um bom sistema hipotecário, sem coordená-lo com o direito
que preside a transmissão da propriedade.
Este aspecto porém é acanhado, e não o
que resulta de um amplo estudo da matéria. O crédito real é necessário,
e pode existir, independente de instituições bancárias, que aliás podem depois
desenvolvê-lo prodigiosamente[337].
O crédito real seria necessário e poderia existir, independente mesmo dos
empréstimos hipotecários, e ainda quando a propriedade imóvel fosse apenas
suscetível de transmissões do domínio, sem alguma separação em qualquer sentido
dos direitos elementares que o constituem[338].
Ou se considere, portanto, o crédito
real em toda a generalidade da sua concepção, ou se o encare
particularmente em relação ao regime hipotecário, não sofre dúvida que o fato
mais importante, e ao mesmo tempo o fato primário, vem a ser o da transmissão
da propriedade imóvel. Este fato deve preceder aos outros, até pela razão da
grandeza jurídica do direito do domínio, que está para os outros direitos
reais, como o todo está para suas partes, como a unidade para as frações[339].
Há nestas mutações, desde a sua causa
geradora até seu complemento, duas relações distintas, que não se deve
confundir. A primeira entre o proprietário e o adquirente. A segunda entre o
proprietário e terceiros; ou antes entre o ato da transmissão da propriedade e
a sociedade inteira. A primeira relação é a do direito pessoal, e de interesse
privado; a segunda é a do direito real, e de interesse público. O direito
pessoal não ultrapassa os limites da obrigação, que o constitui; o direito real
é absoluto, obriga a todos, e pode ser alegado contra todos.
Pela natureza das coisas, por uma
simples operação lógica, por um sentimento espontâneo de justiça, pelo
interesse da segurança das relações privadas a que se liga a prosperidade
geral, como se queira dizer, decide-se de pronto, que o direito real deve-se
manifestar por outros caracteres, por outros sinais, que não os do direito
pessoal; e que esses sinais devem ser tão visíveis, tão públicos, quanto for
possível. Não se concebe que a sociedade esteja obrigada a respeitar um
direito, que ela não tem conhecido.
Eis a razão filosófica do grande
princípio da tradição, que a sabedoria dos Romanos tem fixado, as legislações
posteriores reconhecidas, e que também passou para o nosso Direito Civil.
Penetrou-se a natureza do ato da transmissão da propriedade, atendeu-se às
condições da vida social.
Analisando o fato da transmissão
realizada, - da aquisição da propriedade em virtude da transmissão feita
pelo seu proprietário -, há uma linha a percorrer com seus dois pontos
extremos. A partir do extremo posterior acha-se a posse do novo
proprietário, que é a propriedade em exercício; antes dela, a entrega física da
coisa (tradição), que fizera o antigo proprietário; e antes desta, a causa
primordial da intenção comum de transferir e adquirir a propriedade. A partir
do extremo anterior acha-se o concurso de vontades do que transmite, e do que
adquire; depois dele, a entrega da coisa; e depois desta, a propriedade
efetivamente adquirida.
O fato intencional, a simples
manifestação da vontade, é título de adquirir[340].
O fato material, a tradição, a posse, é o modo de adquirir[341].
Aquele produz o direito pessoal somente[342],
este o direito real[343];
e por tal maneira fiçam estas duas classes de direitos bem discriminadas em sua
própria nascença. Note-se porém, que, se o direito pessoal pode existir
sem a tradição[344],
e sem o direito real. que ela opera, a tradição ao contrário só por si não
confere o direito real[345],
visto que sempre pressupõe (causa praecedens) o direito pessoal com a
sua correlativa obrigação de transferir o domínio[346].
Segundo as ideias da civilização
aperfeiçoada, não diremos, que o fato da tradição no Direito Romano houvesse
sido estabelecido por motivo do que atualmente chama-se crédito. Mas não
diremos igualmente, que esse fato, de que se fez depender a transmissão do
domínio, fosse enxertado na legislação, como formalismo inútil, e até
prejudicial, sem razão jurídica de existência[347].
O que se pode justamente arguir à
tradição é, que, como sinal indicador da translação do domínio quanto aos
imóveis, ou meio de publicidade, longe está de ser um expediente satisfatório;
e tanto mais porque o fato da posse tem sido separado da propriedade, e não
demonstra sempre a consequência e exercício desta[348].
Não se pode, porém, negar, que o fim da tradição foi realmente a necessidade de
uma advertência sobre as mutações da propriedade, e por conseguinte a confiança
de terceiros[349].
A história do Direito Romano, e de todas as legislações, sobejamente o provam.
Todos sabem que a tradição no Direito
Romano substituiu a emancipação (mancipatio)[350]
e a cessão jurídica (in jure cessio)[351],
à proporção que foi desaparecendo a antiga diferença entre res mancipi e
res nec mincipi, finalmente abolida por Justiniano[352].
Esses dois atos, pelos quais alienava-se ou transferia-se o domínio dos bens
mais importantes, eram soleníssimos, da maior publicidade, e não exigiam a
presença da coisa, quando esta era imóvel[353].
E que prova mais evidente, de que se havia sentido necessidade, não de uma
transmissão material de mão à mão, mas de um signal exterior e publico, que
revelasse à sociedade a mutação da propriedade?[354]
Todas as legislações, com variedade de
fórmulas, tem ligado a translação do domínio de imóveis, e dos direitos reais,
a fatos bem positivos, e conducentes a fazer notórios esses direitos,
dando-lhes certa publicidade. O antigo Direito Germânico tinha muitas
solenidades sacramentais, que imitavam a mancipatio das leis Romanas[355].
No regime feudal encontra-se o vest e devest, dessaisine e saisine; e
estas formalidades conservaram-se em muitos costumes de vários lugares da
Alemanha, Bélgica, e mesmo da França, que foram chamados países de nantissement,
onde os imóveis só eram transferidos pelo que denominava-se - obras da lei -[356].
Desaparecendo as - obras da lei -
com a abolição do feudalismo em França, onde a famosa Revolução de 1789
mostrou-se implacável com as antigas instituições em todas as suas formas e
vestígios, uma regra fecunda de publicidade dos direitos reais foi
estabelecida na Lei de 11 Brumaire ano 7°, que impediu os desastres da
louca especulação das céulas hipotecárias - coupons -, de que fora causa
a primeira Lei de 9 Messidor ano 3º.[357]
Antes dessa legislação intermediária a
jurisprudência francesa (com exceção das províncias mais impregnadas das ideias
do Direito Germânico) havia geralmente adotado como meio legal para o
transporte da propriedade, a tradição das leis romanas; mas este grande
princípio estava enfraquecido, e achava-se quase neutralizado. A tendência dos
ânimos para a facilidade das transações, o amor da simplicidade, haviam já
introduzido vários modos de tradição, que se chamou simbólica[358],
e ficta[359];
resultando esta última até de uma simples enunciação de palavras - constituto
possessorio expresso -[360],
quando não era a consequência necessária das cláusulas dos contratos de venda,
doação, e outros semelhantes, - constituto possessorio tacito -[361].
Assim como a tradição havia substituído
os atos solenes e públicos da mancipação, e cessão jurídica; a tradição
nominal subsituiu a tradição real[362],
e tornou ilusória a regra - traditionibus dominia rerum, non nudis pactis
transferuntur -[363].
Foram apenas excetuadas as tradições nos casos de doação, as quais ficarão
dependendo da formalidade da - insinuação -[364].
Eis o estado em que se achavam as coisas, quando o Código Civil da França
admitiu, que a propriedade fosse transmitida só por efeito do consentimento das
partes, e sem necessidade de algum ato exterior[365].
Confundiu-se desta maneira, e logo em
sua origem, o direito pessoal com o direito real; e para esta
confusão muito contribuiu uma bela doutrina, que principiou em Grocio[366],
e foi depois reproduzida por muitos Escritores de Direito Natural[367].
Ocorre ainda que, sendo o direito pessoal o meio mais comum para chegar
a adquirir o direito real, e parecendo que este é o produto ou resultado
daquele, sua natural dependência tende a ofuscar a diferença entre um e outro.
No Contrato de venda, por exemplo,
compete ao comprador o direito pessoal, para que o vendedor lhe entregue
a coisa vendida; e esse direito portanto vem a ser o meio, pelo qual a coisa
vendida terá de ser transferida para o domínio do comprador. A coisa não será
do domínio do comprador, sem que o vendedor satisfaça a obrigação de
entregá-la.
Estabelecido pois o direito pessoal,
de onde tem de resultar a transmissão da propriedade, e pois que a fé dos
Contratos deve ser mantida, muitos espíritos não quiseram ver mais nada; e
deram logo a propriedade como transmitida, e como adquirida, só pelo simples
poder do concurso de vontades em um momento dado. Tomou-se a propriedade em seu
elemento individual somente, não se atendeu ao seu elemento social[368];
contou-se com a boa-fé das convenções, como se a má-fé não fosse possível, ou
não pudesse prejudicar à terceiros[369].
As coisas, que se convenciona
transmitir, é possível que não sejam transmitidas; e a mesma coisa pode ser
vendida a duas diferentes pessoas[370].
Se o Contrato basta, independente de qualquer manifestação exterior da
transferência do domínio, o segundo comprador pode em boa-fé transmitir também
à coisa, que assim irá sucessivamente passando a outros. Aí temos um conflito
de direitos, aí temos uma colisão, onde aparece de um lado o interesse de um
só, e do outro lado o interesse de muitos. Deve-se ser indiferente à constante
incerteza do direito de propriedade, e ao abalo de todas as relações civis? Se
este mal não pode ser no todo desviado, não convirá evitá-lo o mais que for
possível?
A inovação do Código Civil da França
foi tão inesperada, tão perigosa, tão oposta à boa razão, que por muito tempo
duvidou-se, de que houvesse derrogado o regime da Lei de 11 Brumaire ano 7º[371].
Troplong, Martou, e muitos outros Jurisconsultos, não deixam de confessar, que
esta mudança tão grave foi sorrateiramente introduzida, sem a discussão
especial e profunda que ela reclamava. Mesmo assim, quanto a bens móveis, o
novo princípio não teve aplicação[372],
e quanto aos imóveis foi aplicado com restrições[373].
Em vão, portanto, como se tem com razão
censurado[374],
o legislador Francês proclamou seu princípio de transmissão da propriedade só
por efeito das convenções; pois que a força das coisas obrigou a viola-lo em
relação aos móveis, e a não mantê-lo relativamente aos imóveis senão por meio
de disposições contraditórias e incompletas, que expuseram a propriedade
territorial, e a garantia hipotecária, à incertezas e perigos tais, que a
segunda geração sentiu a necessidade de reformar radicalmente a legislação
nesta parte.
Aquilo que desde logo não se havia
conhecido pela fascinação de um princípio belo na aparência, por isso mesmo que
fazia realçar o poder da vontade humana, veio-se a conhecer depois pelas
exigências econômicas de um bom regime hipotecário. Em verdade, o sistema
hipotecário do Código Civil Francês ficara profundamente viciado, desde que se
confundiu os direitos pessoais com os direitos reais. Era uma
anomalia, e uma providência inútil, manifestar-se ao público o direito real da
hipoteca, quando o primeiro direito real, fonte de todos os outros, não
tinha a mesma publicidade[375],
e nos casos mais frequentes[376].
A Lei Francesa de 23 de Março de 1855
realizou a reforma tão desejada por todos os Jurisconsultos[377],
restaurando e melhorando o regime hipotecário da Lei de 11 Brumaire ano 7º, e
antes disto o mesmo já havia acontecido na Bélgica por virtude da Lei de 16 de
Dezembro de 1851.
Todavia ainda hoje se diz, que a
formalidade da transcrição nos registros hipotecários dos atos translativos ou
declaratórios de direitos reais sobre imóveis é só necessária em relação à
terceiros, mas não em relação às partes contratantes; e que subsiste portanto
em toda a sua força o - filosófico e moral - princípio do Código
Napoleão! Tem-se dado ao Direito Francês uma fisionomia singular, da qual não
sequer que ele seja despojado[378].
Não é possível condescender com os
admiradores dessa tão venerada teoria, e na atualidade felizmente todo o seu
valor acha-se reduzido a um mero aparato de palavras, que não tem alguma
significação prática. Tendo-se reconhecido a necessidade de um fato externo
como indicador legal da transmissão da propriedade, não descobrimos razão alguma,
pela qual, em relação às partes contratantes se deva seguir o princípio oposto
da transferência do domínio só por efeito do consentimento. Não vemos, que esse
princípio seja aplicável à qualquer caso, quando as relações entre as partes
contratantes ficam perfeitamente acauteladas com o vínculo das obrigações.
Se o vendedor conserva a coisa vendida
em seu poder, não a entregando ao comprador, tem este sua ação pessoal para
exigi-la; não se faz necessário atribuir-lhe domínio, para que tenha uma inútil
ação de reivindicação[379].
Se, não tendo havido tradição, a coisa vendida passa sem vício para a posse do
comprador, nega-se ao vendedor e a seus herdeiros e representantes, o direito
de reivindicá-la[380].
Se se tem de regular a perda e risco da coisa vendida antes da sua entrega,
também não será preciso converter o comprador em proprietário, para aplicar-lhe
a regra - res suo domino perit -; quando existe a outra regra, que livra
dos casos fortuítos a todo o devedor de um corpo certo - debitor rei certae
ejus interitu liberatur -[381].
E como se concebe que o direito real
só possa existir para com um indivíduo? O domínio é por sua essência um direito
absoluto, e quando se lhe nega este caráter, certamente não existe domínio[382].
Se o vendedor desde o momento do contrato tem perdido o domínio da coisa
vendida, não se concebe também, que ele validamente a possa vender segunda vez
a outra pessoa, só porque o primeiro comprador não foi diligente em fazer
transcrever seu título nos registros hipotecários.
O nosso Direito não luta com tais
incoerências, e outros obstáculos, do Direito Francês, que possam agora impedir
a perfeição e harmonia do projetado Código Civil. Reina o salutar princípio da tradição,
a que estão igualmente sujeitas a transmissões da propriedade móvel, e imóvel[383];
os direitos pessoais e os direitos reais não se confundem; e não
haverá inovação radical, se a tradição dos imóveis for feita por modo uniforme,
solene, e bem notório, qual o da inscrição ou transcrição nos registros
públicos.
Com esta boa teoria, o Direito Romano
também nos legou o detestável sistema das hipotecas ocultas; e o vício
deste sistema (se tal nome se lhe pode dar) foi o que primeiro desafiou nossa
atenção. Em 1834, por ocasião do Projeto do atual Código do Comércio,
procurou-se logo atenuar o mal, mandando-se lançar no registro público do
comércio todas as escrituras de hipoteca, pena de não produzirem efeito algum
contra terceiros. Esse Projeto passou a ser lei em o ano de 1850, mas neste
intervalo criou-se um - registro geral de hipotecas - pelo Art. 35 da
Lei de Orçamento de 21 de Outubro de 1843, e regulou-se esse registro pelo
Decreto de 14 de Novembro de 1846. Resultou daí a inútil duplicata de
registros, sobre que providenciara o Decreto de 7 de Dezembro de 1853.
Coube ao laborioso Ministro da Justiça
o Sr. Nabuco de Araújo a glória de propagar no país as novas ideias, que hoje
dominam a matéria das hipotecas em harmonia com os progressos da ciência. Seu
Relatório de 1854 lançou as primeiras sementes, fez compreender a urgência da reforma
hipotecária, a necessidade de fundar o crédito territorial sobre a base da
hipoteca. O pensamento cardeal do seu Projeto, apresentado ao Corpo Legislativo
na Sessão de 25 qe Julho do mesmo ano[384],
foi a publicidade das hipotecas, e com ela a de todas as transmissões de
imóveis por títulos entre vivos, e instituições de direitos reais.
Uma Comissão especial da Câmara dos
Deputados examinou esse Projeto, e seu parecer[385]
abundou nas mesmas ideias, e até as excedeu, opinando que a transcrição no
registro público dos títulos de transmissão dos imóveis devia ter um valor
ainda maior, do que se lhe dera no Projeto.
“A transcrição (segundo o Projeto)
não induz a prova do domínio, que fica salvo a quem for” - A transcrição (disse
a Comissão) deve importar a prova da propriedade, e não uma presunção; logo que
ela é recomendada e obrigatória[386].
Parece de lógica rigorosa, e ao mesmo tempo conveniente, para afastar meios de
fraude, que sempre a má-fé procura e consegue descobrir, que se lhe dê a
importância de verdadeiro título.”
No pensar de um dos Oradores daquela
Câmara, a medida da transcrição liquidaria a propriedade para o futuro,
deixando-a porém no mesmo estado quanto ao presente, e ao passado, com todas as
variadas causas de complicação e incerteza[387].
No entender de outro, as dificuldades, ainda que grandes, poderiam ser vencidas
por um regulamento provisório, purgando-se a propriedade, e aproveitando-se a
predisposição da Lei das terras públicas[388].
Não é estranho, que, pelo empenho de
fundar o crédito territorial, os espíritos tanto propendam para a ideia da - certeza
legal da propriedade. - Se a simples transcrição dos títulos de domínio, e
dos constitutivos de direitos reais, fosse suscetível de tranquilizar
perfeitamente o credor hipotecário, como não desejar que tal solenidade importe
a prova irrecusável do estado da propriedade imóvel? Eis como se explicam as
aspirações manifestadas na Sessão Legislativa de 1854, e 1855, e ainda outra
razão as justifica.
Tal inovação não é um esforço racional,
é já um fato, uma instituição reinante, cujos benefícios a experiência
confirma. Aí estão as leis hipotecárias da Prússia, Áustria, e de quase todos
os Estados da Alemanha, que falam em seu favor. Os Economistas, e alguns
Jurisconsultos Franceses, cujos escritos nos são familiares, encarecem no
último ponto a bondade da legislação desses países, aplaudem seus grandes
resultados em relação ao crédito dos imóveis, e aos bancos públicos que o
mantém no pé mais favorável. Assim é, porém o assunto requer muita meditação, e
muita prudência.
Será possível estabelecer entre nós o
sistema hipotecário do Direito Germânico, para que toda a propriedade imóvel
fique legitimada e consolidada, tendo os seus registros, como os tem, ou pode
ter, o estado civil das pessoas? Será possível ao menos liquidá-la mais tarde,
lenta e gradualmente, ou depois de um tempo dado? Será possível purgá-la ou
remi-la ocasionalmente do perigo das reivindicações e evicções imprevistas,
como se costuma remi-la das hipotecas? Ou devemos limitar-nos à transcrição
pública dos futuros títulos como um meio de tradição dos imóveis, e condição
legal da transmissão de todos os direitos reais?
O que muito convém é, que se conheça a
fundo as peculiares vantagens de cada um dos sistemas, e as suas
contrariedades, para que não se espere dele resultados que não lhe competem,
nem se lhe queira dar uma extensão impossível.
Sendo feita a inscrição ou transcrição
por meros oficiais públicos, - funcionários inteiramente passivos -, não
passará de um ato puramente material, de uma simples cópia literal ou por
extrato dos títulos de transmissão de domínio entre vivos, ou da constituição
de direitos reais. Ora, adotada esta providência, os registros públicos farão
sempre conhecer as alienações que se forem realizando, e os encargos consentidos
por aquele, que reputa-se proprietário; mas não fornecerão provas do estado
certo da propriedade, não serão o sinal infalível, por onde os mutuantes e
adquirentes possam conhecer a legitimidade do domínio, e a disponibilidade dos
imóveis.
Um ato de alienação não constitui a
prova do direito de quem aliena, nem por conseguinte do direito de quem
adquire, pois que ninguém transmite mais direitos do que tem. Como saber se o
vendedor do imóvel é seu legitimo e verdadeiro proprietário? Investigando-se a
genealogia da propriedade, a sua filiação de título em título, pode-se chegar a
uma grande probabilidade, e raras vezes à certeza completa. Além disto, os
títulos podem conter variados encargos, podem ser anuláveis por vícios
intrínsecos da falta de capacidade legal dos contraentes, e da falta de
consentimento, já pelos vícios de forma.
Acresce ainda, que a propriedade não se
adquire somente pela transferência feita por legítimos proprietários. Ela
também se adquire por uma posse contínua, posse jurídica (civilis possessio),
com a adjunção de certas circunstâncias (justuts títulus - bona fides);
e esse meio de adquirir pressupõe a propriedade transferida por quem não era
proprietário verdadeiro - a non domino -. Falamos da - prescrição -, dessa
filha do tempo e da paz, - patrona do gênero humano -, de que todas as
legislações não têm podido prescindir.
A propriedade seria uma fonte de
inquietações, o mal seria grande, se a prescrição não cobrisse com seu
manto protetor todos os defeitos das aquisições ilegítimas e viciosas. Eis um
outro campo para novas investigações. O tempo da posse teria sido suficiente
para prescrever? Seria a posse acompanhada de boa-fé? Teria sido a prescrição
interrompida ou suspensa?
O domínio é sempre difícil de
provar-se, a propriedade perde-se na noite dos tempos, e a prescrição não
bastou para tranquilizar as relações da vida civil. A sociedade, e seus
legisladores reconheceram a necessidade de contentar-se com a - propriedade
putativa - dando-lhe toda a força de - propriedade verdadeira -.
Seria duro, que o adquirente de boa-fé se achasse exposto às pretensões de
qualquer usurpador temerário, entretanto que seu domínio estava em germe, e só
dependia da consagração do tempo. Fingiu-se, pois, que o prazo da prescrição já
estava completo, e essa propriedade nascente, essa propriedade presumida, foi
protegida por uma ação especial[389].
Se tal é o estado da nossa propriedade,
se a propriedade putativa deve ceder à propriedade verdadeira, do
mesmo modo que toda a presunção deve ceder à verdade, se o título mais débil
sucumbe em presença do melhor título, como se pode dar à transcrição do
registro hipotecário a importância de verdadeiro título? O registro público da
propriedade atual, por ocasião de suas transferências inter vivos, irá
preparando um quadro sempre incompleto da propriedade imóvel, tal qual ela
existe; mas não a purgará, não a liquidará para o futuro; por isso mesmo que a
não liquida quanto ao presente e ao passado.
Se essa transcrição de per si não tem,
nem pode ter, força de verdadeiro título, uma vez que não aumenta o valor do
título já existente; se apenas fixa na cabeça do adquirente os mesmos direitos
que tinha seu antecessor; um simples registro, cadastro, ou recenseamento geral
da propriedade imóvel, qual o tentado pelo Regul. de 30 de Janeiro de 1854[390],
ou outro dirigido com melhores bases, também de per si nada predisporia para a
liquidação e certeza dos domínios. Esse cadastro refere-se mais à coisa do que
à pessoa, isto é, não designa nem a segura ao proprietário, à quem a coisa
verdadeiramente pertence, todos os encargos que a oneram; e por conseguinte não
pode dar em resultado uma exata conta corrente de toda a propriedade imóvel do
país.
O cadastro, que serve de base ao
sistema do Direito Germânico, liga-se intimamente ao registro geral de todos os
imóveis com os direitos reais que os afetam, ou, antes, vem a ser esse mesmo
registro[391];
e desta maneira ele contém a prova oficial, e o título irrecusável de toda a propriedade.
Constituem o direito de propriedade as inscrições, e averbações, desse grande
registro.
Dado esse sistema em um país, deve-se
crer que a propriedade acha-se completamente liquidada, sem o que não haveria a
certeza que ele oferece, ou que se lhe atribui; e também se deve supor a
necessidade de uma constante vigilância, para que tal certeza se conserve em
todo o ulterior movimento da propriedade. A introdução desse regime portanto em
um país como o nosso, onde o domínio é incerto, e apenas presumido na maior
parte dos casos, forçosamente depende de uma primeira operação, que vem à ser a
liquidação de todos os imóveis, a consolidação da propriedade, e a sua purgação
ou depuração de todos os direitos e pretensões eventuais, que a fazem duvidosa.
A menos que um golpe de poder
arbitrário cortasse o nó de tantas dificuldades, em vez de removê-las com a
mais escrupulosa apreciação nos direitos de cada um, e de todos, fora mister
para execução do plano abalar a sociedade por seus fundamentos, chamar à contas
um país inteiro, e perturbar todas as relações civis por meio de uma revolução
sem exemplo. Também se oporiam a essa vã tentativa as primeiras ideias sobre a
ordem judiciaria. Como obrigar-se a pleitear o proprietário verdadeiro, ou
suposto, que não foi por ninguém inquietado? Como obrar o poder judicial, sem
que o interesse de partes venha solicitar sua intervenção?
A manutenção de tal sistema, se fosse
possível a legitimação da propriedade, lutaria com a mesma ofensa de
princípios, e daria lugar aos gravíssimos inconvenientes do regime germânico. O
registro das mutações futuras não poderia consistir somente em uma transcrição
material por intermédio de um oficial público, mera testemunha instrumentária;
mas deveria ser o efeito de um exame preliminar, e muito rigoroso, dos títulos
que se apresentassem.
Para que assim fosse, as delicadas
funções desse exame justificativo seriam confiadas à uma magistratura, à juízes
que conhecessem da verdade dos atos, e da sua forma; transformando-se destarte
a sua jurisdição voluntária em contenciosa, e submetendo-se a vontade livre das
partes contratantes a uma autoridade, que elas não tem reclamado.
Iguais inconvenientes teria a lenta e
gradual depuração da propriedade, à medida que fosse passando pela fieira de
translações futuras; e no mesmo caso estaria a purgação dentro do tempo maior
que a lei tem marcado ou houvesse de marcar para a prescrição aquisitiva. Pelo
nosso Direito a prescrição de trinta anos (longíssimo tempo) não depende da
existência de título, bem que o possuidor de má-fé em tempo nenhum pode
prescrever[392];
mas por outras legislações não se pode opor a prescrição trintenária nem a
falta de título, nem mesmo a do requisito de boa-fé[393].
Concebe-se este último expediente sob a
ideia de que, passado o maior tempo da prescrição, a propriedade que não se
houvesse transmitido, e que portanto não tivesse sido examinada e liquidada,
estaria prescrita em mão de seus possuidores desde a época da lei; entretanto
as prescrições dormem[394],
e também podem ser interrompidas[395].
Além disto, para que não houvessem lacunas na história cadastral do movimento
da propriedade, fora preciso também não dispensar as aquisições por título causa-mortis,
ao que se opõe o interesse público da pronta devolução das heranças[396].
Como, não tendo maior inconveniente,
poder-se-ia admitir uma purgação facultativa, por ocasião das alienações, e
contratos hipotecários; criando-se pouco e pouco, ao lado da propriedade
incerta, uma propriedade remida e certa, e só dependente de um curto prazo de
prescrição. Quem adquirisse com esta precaução, ou quem emprestasse sobre
hipoteca, teria a segurança de que o imóvel pertencia a seu antecessor ou
devedor, sem estar sujeito a essas evicções inopinadas, cujo perigo será sempre
inimigo do crédito.
Não seria sem exemplo esse meio de
purgar a propriedade, e torná-la incomutável. As antigas leis da Bélgica o
permitiram[397],
e um costume da Bretanha (Província da França) também havia admitido com o nome
particular de - appropriance - o mesmo sistema de proteção à propriedade,
e firmeza de suas aquisições[398].
Esta usança tão salutar, abolida pelo art. 56 da lei de 11 Brumaire ano
7º, tinha alguma semelhança com o decreto voluntário do antigo Direito Francês,
depois substituído pelas cartas de ratificação; porém produzia efeitos
mais extensos, libertando os imóveis, não só das hipotecas, senão também de
todos os direitos reais, ainda que fosse à título de domínio[399].
Em nosso Direito nós temos dois modos
para remir a propriedade dos encargos hipotecários[400],
e se essa remissão é possível quanto ao direito real da hipoteca, não deixa de
sê-lo quanto aos direitos reais por título de domínio. Os créditos
hipotecários, como diz Grenier[401],
também são propriedade.
Quando são conhecidos os credores do
vendedor do imóvel, e podem ser pessoalmente avisados, não há inconveniente
algum, pois que o fim da hipoteca é o pagamento; porém, no caso da incidência
deles, ou porque não sejam intimados[402],
ou porque só o - sejam por editais em razão de não serem conhecidos[403],
é provável, que hajam muitas preterições injustas.
Quanto aos direitos hipotecários, os credores
são sempre desconhecidos no sistema de hipotecas clandestinas, e o são em
grande parte no sistema da publicidade incompleta. Todavia o Código Civil
Francês, assim como admitiu a remissão das hipotecas inscritas, de que é um
prelúdio a transcrição dos contratos translativos da propriedade imóvel[404],
não hesitou em facultar meios para remissão das hipotecas legais dos menores e
mulheres casadas, que aliás são dispensadas da inscrição[405].
Os direitos por título de domínio, que
não se conhecem, acham-se nas mesmas circunstâncias dos hipotecários não
registrados; e não se pode negar que há injustiça em fazer depender a
existência de direitos legalmente adquiridos da fortuita notícia de uma
proclamação[406].
Ainda há outro inconveniente nesse modo de consolidar a propriedade,
inconveniente que provocou sua rejeição por parte dos sábios organizadores do Projeto
de lei relativo à aquisição, conservação, e publicidade, dos direitos reais
sobre imóveis no Cantão de Genebra[407].
“Nossas antigas leis (diz-se na
Exposição de motivos desse Projeto)[408]
davam esta segurança com o socorro das - subastações -. Aquele que comprava com
as formalidades próprias dessa espécie
de venda, ficava garantido de toda a evicção. Posto que as subastações não
tivessem sido empregadas senão para as desapropriações forçadas, elas
tornaram-se, por um desvio de sua instituição primitiva, o meio frequentemente
empregado para realização das vendas puramente voluntárias.”
“Mas, se por este meio alcançava-se
a segurança do comprador, era por um preço, que lhe tirava todo o merecimento.
Aquele, que fazia pôr em venda, podendo envolver os prédios do vizinho com os
do alienador, esse vizinho, que nada sabia, não obstante as formalidades da
hasta pública, ficava privado da faculdade de reivindicar o que era
incontestavelmente sua propriedade. Assim pois, estava-se em segurança como
adquirente, mas incessantemente exposto como proprietário.”
O sistema hipotecário germânico será
elogiado por aqueles que só o conhecem na aparência[409].
Derivado das antiguidades feudais, medrando em países de longa mão preparados,
onde a propriedade territorial consta de grandes domínios, não diversa, cujo território tende
progressivamente à retalhar-se por efeito das sucessões hereditárias. Com dados
opostos aos daquele sistema, o registro hipotecário, em correlação com o
cadastro, acompanhando as divisões materiais e jurídicas da propriedade imóvel,
seria uma montanha de papéis, um dedalo de livros.
Repousa tal sistema, em que o
magistrado pode, e deve, previamente examinar a força obrigatória dos
contratos, seu conteúdo, sua forma, e os direitos de terceiros, que nada
reclamam. Conceda-se que esse preliminar exame tem vantagens, pois que pode
prevenir alguns abusos; entretanto, como não se oferece corretivo contra
omissões possíveis, como há o gravíssimo inconveniente das protelações, deve-se
dar preferência à plena liberdade das alienações e transcrições, salvos os
direitos de terceiro. A liberdade individual, vantagem mais preciosa da
sociedade, repele tantas formalidades, dispensa tanta vigilância e supremacia.
Se o sistema germânico, fixando a
certeza da propriedade, proporciona ao crédito real as mais sólidas garantias,
não se segue que seja possível transplantá-lo, e que não tenha também suas
vantagens peculiares à bem do crédito o sistema da Legislação Francesa de 1779
(l1 Brummaire ano 7º), ultimamente restaurado na própria França, e na Bélgica.
Nem todos podem tudo. Nas partes da Alemanha, onde a propriedade territorial é
fracionável, e tem mais vida, a sabedoria dos legisladores evitou que o sistema
germânico fosse introduzido. O mesmo aconteceu na Baviera Rhenana, e nas
Províncias Rhenana da Prússia.
O sistema da transcrição como ato
concomitante das convenções, para operar a transmissão dos imóveis, e atribuir
direitos reais, se não purifica a propriedade, pelo menos a expõe à luz da
publicidade no estado em que se acha, preenche completamente o fim da tradição,
separa os direitos reais dos pessoais, e impede os estelionatos,
isto é, as fraudes das alienações e hipotecas duplicadas, da alienação do que
já está hipotecado, da hipoteca do que já está alienado, e da alienação e
hipoteca de imóveis como livres, quando já estão onerados de direitos reais,
além de outros enganos no mesmo sentido.
Quando houverem esses artifícios fraudulentos,
preferirá aquele, cujo direito real tiver por si a prioridade da inscrição, ou
transcrição, nos registros públicos[410]
(393). Os adquirentes, e mutuantes, se nada constar desses registros, sabem que
adquirem e emprestam com segurança em relação ao alienador, ou devedor
hipotecário; não sendo porém negligentes em dar à publicidade os seus títulos.
Pelo que respeita à direitos de terceiros em razão dos vícios e qualidade dos
títulos anteriores, a lei não assegura nada, e deixa à cada um o cuidado das
investigações. Quando se trata de interesses particulares, a vigilância
individual será sempre mais profícua do que toda a proteção da autoridade.
Pelo fim dominante deste prudente
sistema de transcrição, bem se vê, que não se faz preciso o mesmo meio de
publicidade para as transmissões da propriedade por títulos causa-mortis.
As fraudes, de que tal sistema preserva, realizam-se pelo concurso de dois atos
inter vivos contendo a alienação total ou parcial da mesma coisa pelo
mesmo proprietário; e nas transmissões por morte não há este perigo, não há
colisão possível, há um fato único - o do falecimento -, de onde provém
os direitos sucessórios.
Seja qual for o sistema que se adote, a
teoria dos direitos reais, pela sua íntima correspondência com a teoria
do crédito, merece por certo a primeira atenção. A Legislação Civil, que bem
compreender as necessidades econômicas da época em que vivemos, deve designar
taxativamente os direitos reais, e declarar que não admite outros. Deve
ser parca em concedê-los, deve expô-los à grande luz da publicidade; não se
deixando porém dominar por alguma ideia exclusiva, não recusando proteção aos
variados interesses da sociedade.
O crédito real tem nos direitos
reais seu único amparo, e ao mesmo tempo um poderoso inimigo. Apoiado na
hipoteca dos imóveis, ele tem de conciliar as dificuldades, que resultam:
1º Da mesma hipoteca:
2º Do primeiro direito real, que é o
domínio.
3.º Dos outros direitos reais.
Essas três origens de embaraços provém
de situações diferentes, em que a propriedade imóvel se pode achar; e em cada
uma delas há muitas e variadas modificações, que equivalem à situações novas.
Ensaiemos uma classificação desses diversos estados da propriedade por
excelência.
Dois são os modos derivativos de
adquiri-la:
I - Por atos entre vivos:
II- Por sucessão legal, ou
testamentária.
I
Adquirida por atos entre vivo
1. Propriedade completa, e
verdadeira.[411]
2. Propriedade também completa, mas putativa.[412]
3. Propriedade limitada pelo
enfiteuse.[413]
3.1. Domínio direto:[414]
3.2. Domínio útil, sujeito à consolidação:[415]
3.2.1. Por efeito da opção.[416]
3.2.2. Por comisso.[417]
3.2.3 Por devolução.[418]
4.
Propriedade comum:[419]
4.1. No estado conjugal:
4.1.1. Com regime da comunhão legal.[420]
4.1.2. Com o regime da comunhão convencional.[421]
4.1.3. Com o regime dotal.[422]
4.1.3.1. Dote inestimado.[423]
4.1.3.2. Dote estimado.[424]
4.2 Na comunhão entre herdeiros antes da partilha:
4.3. Nas sociedades em geral;
5.
Propriedade limitada pelos direitos reais :
5.1. Desmembrada :
5.1.1. Pelo usufruto
5.1.1.1. Usufruto legal.[425]
5.1.1.2. Usufruto convencional.
5.2. Pelo uso, e habitação.
5.3. Pelos censos.
5.4. Pela superfície.
5.5. Pelos direitos no interior do solo, e seu espaço
aéreo:
5.2. Gravada .
5.2.1. Pelas servidões reais:
5.2.2. Pelas servidões pessoais:
5.3. Afetada :
5.3.1. Pela hipoteca:
5.3.1.1. Hipoteca legal:
5.3.1.1.1. Hipoteca legal privilegiada.[427]
5.3.1.1.2. Hipoteca legal simples.[428]
5.3.1.1.3. Hipoteca judiciária.[429]
5.3.1.2. Hipoteca convencional.[430]
5.3.2. Pela anticrese.[431]
6.
Propriedade revogável, ou resolúvel.[432]
6.1. Na venda.[433]
6.1.1. Condições em geral.[434]
6.1.2. Condições em particular:
6.1.2.1. Pacto comissório.[435]
6.1.2.2. Pacto de retro.[436]
6.1.2.3. Pacto de non alienando.[437]
6.1.2.4. Pacto addictione in diem.[438]
6.1.2.5. Pacto protimeseos.[439]
6.2. Na doação:
6.2.1. Condições.[440]
6.2.2. Superveniência de filhos na que é feita entre
marido e mulher.[441]
7. Propriedade rescisível.[442]
7.1. Pelo benefício de restituição:
7.1.1. Concedido à menores, e pessoas à eles equiparadas.[443]
7.1.2. Concedido à ausentes.[444]
7.2. Por erro nos Contratos:
7.3. Por violência, coação, e temor.[445]
7.4. Por dolo, fraude, e simulação.[446]
7.5. Por lesão enormíssima.[447]
7.6. Por vícios redibitórios.[448]
8.
Propriedade anulável.[449]
8.1. Por defeito interno
8.1.1. Em relação à pessoas que contratam, pela
incapacidade de obrar.
8.1.1.1. De menores.
8.1.1.2. De pessoas à eles equiparadas.
8.1.1.3. De menores suplementados, ou casados, que sem
licença judicial não podem alienar e hipotecar imóveis.[450]
8.1.1.4. De mulheres casadas:
8.1.1.5. De maridos, quanto aos imóveis do casal.[451]
8.1.1.6. Em varios casos especiais.[452]
8.2. Em relação às coisas, objeto dos Contratos:
8.2.1. Às coisas litigiosas.[453]
8.2.2. Às de heranças de pessoas vivas.[454]
8.2.3. Aos imóveis dotais.[455]
8.2.4. Em vários outros casos.[456]
8.3. Em relação à causa dos Contratos.
8.3.1. Falta de causa
8.3.2. Causa falsa.
8.3.3. Causa ilícita por proibição da lei.[457]
8.3.4. Causa ilícita por oposição à moral.[458]
8.4. Por defeito externo.
8.4.1. Falta de solenidades instrumentarias:
8.4.2. Falta de pagamento da siza.[459]
9.
Propriedade nulamente adquirida:
9.1. Por defeito interno :
9.1.1. Nulidade de alienações feitas por Ordens
Regulares, sem licença do Governo.
9.1.2. Nulidade de doações entre vivos de todos os
bens sem reservado usufruto, ou do necessário para subsistência do doador.
9.1.3. Nulidade de venda feita por pais à seus
descendentes.
9.1.4. Em vários outros casos.
9.2. Por defeito externo:
9.2.1. Falta de solenidades instrumentárias
substanciais.
9.1.2. Falta de insinuação das doações.
II
Adquirida por sucessão hereditária
1. Na sucessão legal:
1.1.
Propriedade livre:
1.2.
Propriedade de usofruto.
2. Na sucessão testamentária:
2.1.
Propriedade livre
2.2. Propriedade gravada, e com encargos de restituições
e condições:
2.3. Propriedade rescisivel, e anulável, pelas mesmas
causas, que podem viciar títulos entre vivos, além de outras causas privativas:
O que exigem de nós tantas, e tão sérias questões? Um
estudo meditado. Que nos falta para empreendê-lo? Uma simples animação, e nada
mais. Que resta fazer? Completar a obra encetada. E que maior bem senão fazer à
um povo, quando se-lhe-dá leis perfeitas, e justas? Também não ha fato mais
glorioso, que possa imortalizar a memória de um MONARCA ilustrado!
[1] A publicação desta
última parte dos trabalhos preparatórios precede a das outras, por ser precisamente a que preenche às vistas do Governo, como a de que se carece para ponto de partida
na confecção do Código Civil. A classificação das outras partes da Legislação foi ideia
de segunda ordem, no intuito de colher-se proveito maior. Essa classificação científica, mais que as cronológicas, e as alfabéticas, facilitará, o estudo de cada um dos ramos da
legislação; sua utilidade tem de ser permanente, entretanto que a da parte ora
impressa nao passa de transitória.
[37] O Código Civil é parte integrante do Código Geral para os Estados Prussianos, que contém
a legislação comercial, administrativa, e criminal. Não se deve confundir este pelo nome de Código com a obra conhecida pelo nome de - Código de Frederico -, publicada em 1749 e 1751, e organizada pelo Chanceler Coccêo.
[38] Não conhecemos o Código da Baviera senão pelos
fragmentos deslocados da Concord. de Saint-Joseph. Este Código (diz ele pag. 26
Ed. Franc.) é quase inteiramente moldado sobre o Direito Romano.
[39] Entretanto, pelo que respeita ao regime hipotecário, o Código Geral dos Estados Prussianos serviu de tipo aos grandes
princípios da publicidade e especialidade, que distinguem o sistema
germânico. É pela transcrição dos títulos translativos de domínio que se fixou a propriedade, e a transcrição quanto aos imóveis
substituiu a tradição do Direito
Romano.
[40] Veja-se Lassaulx - Introduct à
l'étude du Cod. Napol. -, que explica por este modo: - O 1º Livro trata dos
direitos resu1tantes das relações das pessoas, abstração feita das coisas. O 3º
Livro dos direitos provenientes das relações entre as pessoas, que têm por
objeto as coisas no estado de movimento e circulação. O Livro intermediário diz
respeito às coisas no estado de repouso.
[233]Trat.
de Dir. Rom. Tom. 2º pag. 149. Esta censura faz o sábio Escritor por ocasião de
um interessante episódio sobre o Direito Francês. Depois de observar que os
Autores alemães expõem os princípios romanos sobre a - capitis diminutio -
sem pretenderem achar neles alguma aplicação prática, depois de passar em
resenha os efeitos da chamada - morte civil- , explica-se deste modo “A
distinção entre o Direito Civil, e o Direito Natural, é evidentemente tirada do
Direito Romano; mas ela tinha entre os Romanos uma significação muito diversa;
porquanto o - jus gentium - era um direito completo, um direito positivo como o
- jus civile -. Ao sistema romano se tem irrefletidamente substituído um sistema
bem diferente, uma distinção entre as instituições do Direito, - umas mais
positivas, mais arbitrárias, e outras mais naturais. Mas este sistema, sem
utilidade prática, é vago em suas demarcações, e vacilante em suas bases.»
- Com igual critério Chassat em seu Trat. dos Statutus, pag. 197, censurando
também o Direito Francês, quanto à reciprocidade matemática, fundada sobre
Tratados, de que fez depender os direitos civis dos estrangeiros, reprova essas
enumerações arbitrárias de direito, essas sutilezas, apreciações, e distinções
mais ou menos plausíveis, que a matéria fornece. “A matéria comporta, diz
ele, uma teoria mais elevada, e mais segura. O que importa em legislação é
consagrar princípios, lançar vistas largas, que dominem as opiniões no sentido
dos interesses gerais.”
[460]Assim acontece, quando a nulidade é de pleno direito.
[461]Arts. 342, e 582 § 4º, Consolid.
[463]Arts. 582 § l º, e 583, Consolid.
[464]Arts. 582, 585, e 586, Consolid. Como as nossas leis
não são claras, mesmo impondo o decreto irritante, é impossível discriminar
quais as nulidades de pleno direito, quais as dependentes de ação. O mesmo
acontece quanto as atos ou fórmulas do processo.
[465]Arts. 384 e seg. Consolid.
[466]Arts. 412, e 414 Not., Consolid.