segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Sistema heptanimal de inteligência

                                         


 (sobre os fundamentos da razão animal)

 Ubi es, Adam?                       

Paulo JB Leal

  

 Desvendar as competências que permitem ao ser humano pensar sobre si, sobre os outros e sobre a objetividade fenomênica, certamente é o objetivo mais difícil de ser cumprido pela filosofia. Basta examinar os escritos deixados por quem se aventurou sobre isso para constatar que a respeito disso não há acordo sobre nada. Tudo é objeto de polêmica e a discórdia impera, fazendo-nos perguntar sobre o motivo, sobre o que efetivamente é tratado pelos contendores nessas controvérsias e, também, se é possível encontrar algo que possa ser aceito como ponto de partida, ou de chegada, no âmbito dessas investigações!

Inicialmente, é preciso reconhecer que, nesse ambiente aparentemente caótico de discórdia, há dois pontos extremos enredados na controvérsia. Um, que não consegue explicar de onde se deve partir para a investigação que precisa ser feita pela filosofia; e outro, que não esclarece aonde é possível chegar no final desse estudo.

Portanto, parece não haver dúvida de que a primeira questão a ser tratada sobre esse tema deve ser a respeito do ponto de partida da tarefa, depois esclarecer com o que se pode contar para seguir adiante e, por fim, aonde é possível chegar ao longo dessa jornada!

Tomando-se em consideração que o homem só consegue entender a si mesmo na medida em que põe em ordem o mundo no qual ele existe, parece não haver dúvida de que o ponto de partida do estudo sobre a razão humana está na delimitação do material utilizado pelo homem para produzir o mundo da sua existência e na identificação do que ele toma emprestado do universo fenomênico para poder fazer isso.

Esse método tem o mérito de tornar evidente o fato de que homem e universo são os pontos de partida e de chegada dessa investigação; O universo como o todo, como matéria, mutação e movimento no espaço, e o homem como a parte que faz uso de um sistema mediado por sensações.

As relações entre universo fenomênico e homem sensível-racional são os pontos de partida e de chegada que envolvem as questões centrais a serem tratadas para entender como a objetividade se imprime no organismo humano de modo a permitir que seja produzido um mundo de inteligência a respeito dela.

Essa é a questão central da filosofia. Sem isso, nenhuma tarefa pode ser cumprida em ordem, buscando entender os processos físicos, químicos e orgânicos que resultam no extraordinário fenômeno da objetividade que funda, desenvolve e organiza a razão humana.

a. Universo como matéria, mutação e movimento

Examinando-se a noção de universo como totalidade fenomênica, facilmente se constata que nada nele é estático. Das galáxias às estrelas, do sistema solar ao planeta Terra, do continente à aldeia, tudo é transformação. São processos, ciclos, fases e momentos que embora aparentemente se repetem, jamais ocorrem do mesmo modo. Todas as tentativas feitas pela ciência, com objetivo de encontrar referências estáticas a serem utilizadas como pontos de partida no exame dos processos que determinam a existência do universo, foram em vão. Não há nenhum registro de êxito a esse respeito.

Não obstante, parece razoável, para esse fim, tomar o universo como o todo e o homem como uma de suas partes. Também, embora não sendo possível determinar sua causa primária mais distante, objetivamente é possível considerá-lo como multiplicidade de fenômenos que se sucedem em ciclos dinâmicos no espaço, encadeados entre si, em que uns causam os outros.

Logo, desse modo, o universo como totalidade e organismo humano enquanto parte que se distingue por ser dotado de sistema de inteligência que lhe permite estabelecer relações de causa e de consequência em face de movimentos e de mutações, é o que pode ser tomado como ponto de partida para exame das questões a serem consideradas neste estudo.

b. Homem como sistema de inteligência orientado por sensações

Para evidenciar os eventos constitutivos da razão humana, é preciso examinar como interagem, entre si, no plano da objetividade, os processos que relacionam átomos e galáxias ao influxo de ondas e de partículas que produzem fenômenos que se imprimem com matéria, no âmbito do organismo humano, por meio das sensações.

Por outro lado, é preciso verificar e entender o que efetivamente ocorre quando essas matérias, impressas na sensibilidade, ao serem postas em ordem pelo sistema de inteligência natural do organismo, produzem memórias que passam a ser utilizadas pelo sistema racional como sínteses dos eventos que lhes deram causas e, com isso, do próprio mundo da natureza.

O certo é que, na medida em que se move, o universo produz fenômenos veiculando matérias que se imprimem no organismo humano de modo a fazê-lo produzir sínteses as quais se acumulam, ao longo de sua existência, como memórias do mundo natural. Com o passar do tempo1, elas se organizam, relacionam-se enquanto totalidade e, na mesma medida em que se ordenam, emancipam-se do universo que lhes deu causa de maneira a substituir integralmente a objetividade fenomênica no âmbito da razão humana.

É por isso que, tomando-se a objetividade fenomênica em exame, razão é ordenação de sensações. Para alguém privado da visão, do tato, do olfato, do palato e da audição não há impressões, nem sínteses ou memórias de sensações e, como tal, não há também mundo da natureza, comprovando que a razão humana só pode ser tomada como sistema de inteligência do universo fenomênico quando estiver orientada por memórias de sensações.

Universo fenomênico como matéria, mutação e movimento no espaço e sistema de inteligência orientado por sensações são os dois âmbitos do sistema de relacionamentos que devem ser tomados como ponto de partida enquanto ciência da filosofia. São eles que permitem estabelecer os vínculos que ligam totalidade e parte (universo e razão) para entender os processos constitutivos do sistema utilizado pelo ser humano para pensar a respeito da objetividade na qual ele se reconhece existente.

c. Das impressões sensíveis às sínteses de inteligência

Todo o evento que incide sobre a sensibilidade humana imprime-se nas memórias do organismo por meio das sensações. São os fenômenos imprimindo-se, e o organismo produzindo memórias. Por isso, ao tomar-se o mundo da natureza sob o exame da razão, facilmente se constata que ele não passa de memórias das sínteses produzidas pelo universo fenomênico no âmbito dos sentidos humanos.

O mundo que se constitui na razão, nessa fase de desenvolvimento do sistema de inteligência, são apenas memórias da objetividade relacionadas pelos sentidos humanos: cinco2 exógenos, ou de qualificação objetiva da matéria dos fenômenos, mediados pelas sensibilidades visual, tátil, olfativa, auditiva e gustativa do organismo e dois endógenos, ou de imputação, coordenados por instruções com os escopos de sobrevivência e de reprodução que integram o sistema funcional do organismo. Os sentidos exógenos imprimindo dados da objetividade fenomênica e os endógenos pondo o sistema funcional a produzir sínteses de inteligência da realidade natural.

d. Razão como ordenação de sensações

O método utilizado pelo organismo para produzir dados da racionalidade consiste na ordenação das sínteses impressas pelos sentidos no sistema de memórias da objetividade, ou seja, os sentidos exógenos veiculando informações e produzindo memórias da matéria dos fenômenos, e os sentidos endógenos integrando-os às funções vitais do organismo. Aqueles identificando e acumulando informações da natureza e estes relacionando-os ao sistema que está na base dos processos que produzem a vida humana.

Mas as impressões produzidas por meio dos sentidos são sempre parciais e incompletas. Embora o universo seja o resultado da multiplicidade de fenômenos complexos, os sentidos produzem sínteses singulares relativas à parcela da objetividade que se imprime nas sensações. Por isso, é preciso relacionar essas sínteses, pô-las em ordem para integrá-las aos demais dados de modo a torná-los tão complexos como são os fenômenos que os deram causa.

Surge, então, algo novo no sistema utilizado pelo organismo para tratar das suas relações com a objetividade fenomênica, pois toda vez que as sínteses dos dados impressos são ordenadas de modo a permitir que elas sejam submetidas, em ordem, às demais memórias produzidas por meio das sensações, um novo dado é produzido pelo sistema de inteligência: a racionalidade.

Com a constituição do sistema racional, sempre que o sistema de inteligência identificar, durante o processo de ordenação das matérias dos fenômenos, semelhança, ou identidade, entre sínteses de memórias, as partes do universo que produziram esses dados, embora também complexos, passam a ser relacionadas como um dado singular (lua, sol, árvore, casa, etc).

Se fosse possível comparar a forma da ordenação das memórias a partir das sínteses impressas pelos sentidos exógenos a uma matriz matemática, seria possível imaginar um sistema no qual as sínteses estariam ordenadas espacialmente no plano horizontal “x” e temporalmente no plano vertical “y”, obedecendo a mesma ordem em que foram impressas no organismo.

Na medida em que as sínteses se repetem, ou se assemelham, os dados impressos se consolidam na posição “x” do plano horizontal-espacial e são colocadas em ordem cronológica no plano da posição vertical-temporal “y” para ganhar, com isso, a forma humana de ordenação racional.

A razão, nesse aspecto, e como se constata, não passa de um sistema de relacionamentos entre impressões e sínteses, espacial e temporalmente ordenadas no âmbito do sistema memórias do organismo.

A razão animal, ou orgânica, portanto, não passa de interações que o sistema de inteligência produz quando relaciona impressões e sínteses de modo a representar os eventos do ambiente fenomênico como dados que produzem memórias, ou sínteses de representações do mundo natural, no organismo humano.

e. Razão animal e razão cultural

A razão se constitui em dois momentos sucessivos. O primeiro, que principia no organismo quando a matéria dos dados oriundos da objetividade é impressa no organismo e o sistema de inteligência as põem em ordem no tempo e no espaço como sínteses de memórias do mundo natural. O segundo, que se constitui na medida em que os dados utilizados pela racionalidade, ao invés de serem produzidos por meio da ordenação das sínteses de impressões do mundo da natureza, são constituídos apenas por memórias de relações3.

Enquanto as relações entre impressões e sínteses são orgânicas e de primeiro nível, típica da natureza animal, as de segundo nível são sínteses produzidas unicamente no âmbito da razão e cultural. Ou seja, no primeiro caso as relações são de ordenação de impressões produzidas pela matéria do fenômeno no organismo, as de segundo nível são decorrentes unicamente de relações entre sínteses de impressões. No primeiro caso, a síntese resulta do fenômeno; no segundo, apenas das memórias do fenômeno.

Sem dúvida alguma que na delimitação dessa questão é que se situa a maior dificuldade enfrentada pela filosofia no escrutínio das fontes materiais e dos processos formais que constituem a razão humana. E isso se deve ao fato de a razão introduzir, nessa fase do sistema racional, elemento novo de ordenação das memórias: a linguagem.

Não havendo mais associação direta entre os dados tomados pela racionalidade da objetividade fenomênica, o sistema de inteligência passa a fazer uso de signos (fonéticos, escritos, corporais, etc) para produzir as representações das relações entre memórias e, com isso, unificar sentidos a serem atribuídos ao universo e aos seus fenômenos no sistema de relações utilizado pelo indivíduo para tratar de si, da objetividade e da própria razão humana.

Enquanto a razão animal é o sistema de inteligência orientado por sensações, a razão cultural é mundo4 inteligível por relações entre signos e memórias.

f. considerações finais

Este texto é o último de quatro já escritos5, produzidos a partir das ideias apresentadas por mim, no grupo de estudos sobre inteligência. Sendo possível estabelecer uma ordem cronológica para colocá-lo em face dos outros três, por sua temática, deveria ter vindo após o primeiro.

Em uma época em que o ser humano teve seu espírito arrancado da natureza e da sua ancestralidade para ser aprisionado na história, ficam aqui algumas dicas para encontrar o caminho da liberdade.

1O certo é que o tempo, em si, não passa de mudança objetiva no espaço. Espaço e movimento, portanto, seriam suficientes para expor essa ideia.

2Bem examinado, seria possível afirmar serem apenas dois, os sentidos exógenos: visão e tato. O olfato, o palato e a audição são apenas especializações do tato. Já a visão tem outra natureza: As impressões visuais são leituras de diferentes comprimentos de ondas de luz que permitem ao sistema ótico do organismo produzir sínteses de formas espaciais e do espectro de cores do universo fenomênico.

3Enquanto no primeiro caso as memórias são produzidas diretamente da objetividade, no segundo elas são produzidas tendo como fonte os dados do sistema matricial.

4É preciso distinguir universo fenomênico, do mundo do homem. Aquele é resultado da objetividade sensível e este produto da cultura e do sistema racional.