sábado, 21 de março de 2020

João Bonumá



João Bonumá

Filho de pai francês, Marcel Bonumá e de mãe brasileira, Numeralda Geiger, João Geiger Bonumá nasceu em Uruguaiana, em 21 de fevereiro de 1890, e faleceu em Júlio de Castilhos, no dia 15 de junho de 1953, foi um dos mais importantes juristas gaúchos do século XX.
Com apenas 15 anos de idade, um discurso que fez em saudação ao inspetor geral das ferrovias do país, Gahance Custin, rendeu-lhe apoio para estudar na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, onde se formou em 1911.
Em sua obra sobre menores abandonados, ele registra que, em 1909, quando ainda estudava na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, para atender suas necessidades financeiras, foi trabalhar na polícia carioca, convivendo de perto com o problema da infância delinquente, tema que seria objeto de seu primeiro estudo, “Menores abandonados e criminosos” (1913, 131p, Officinas grafhicas da “Papelaria União”- S. Maria).
O livro nasceu da tormentosa experiência vivida já no primeiro dia de seu trabalho, quando encontrou “...em uma sala sujíssima e humida quatorze crianças, enlameadas e esfarrapadas que dormiam sob o assoalho, aconchegadas umas sobre as outras, n’um somno a todo instante cortado por estremecimentos de frio.”
Essa obra, dedicada ao Ministro Leoni Ramos (chefe de polícia na época em que trabalhou no Rio de Janeiro), inicia com uma frase de Jesus Cristo, “Sinite parvulos venire ad me” (vinde a mim as criancinhas), é publicada quando tinha apenas 23 anos, revelando sua sensibilidade e preocupação social.
Foi um trabalho, como ele mesmo registra, feito com muito amor, na melhor quadra de sua mocidade. Para escrevê-lo, entrevistou menores que viviam nas ruas do Rio de Janeiro (Bernardina Estella, Luiz de Oliveira, Manoel José Batista, João Lucas, Francisco Tito Nogueira e Arthur Joaquim de Almeida) com o objetivo de traçar o perfil psicológico desses menores abandonados, visitando também, e pessoalmente, todas as instituições encarregadas de atendê-los, como a Escola de Menores Abandonados (“...uma vergonha para nossos fóros de civilisados; antes não existisse”) - , o Instituto Profissional e a Escola de São José, a Colônia Correicional de Dous Rios e a Casa de Detenção.
A obra é de grande atualidade. Passados noventa anos de sua edição, se apenas mudássemos os nomes da Escola de Menores Abandonados para FEBEM ou outras instituições do gênero hoje, com certeza, o leitor não notaria que o trabalho foi escrito em 1913. São interessantes as informações trazidas em seus estudos, especialmente no que diz respeito à legislação francesa vigente entre 1830 e 1905, que optou pelo recrudescimento da pena, comparado com o sistema adotado na Suíça, cuja escolha se deu por um sistema de assistência aos menores. Considerando a realidade desses dois países, enquanto na França a criminalidade quintuplicou, na Suíça, de 1270 menores assistidos, apenas 33 voltaram a delinqüir.
Ao ler o livro é impossível deixar de concordar quando, manifestando-se contra a imputação criminal, em razão de atos praticados por menores, ele afirma: “O que cumpre à sociedade è lançar a taboa de salvação a esses desgraçados e não mergulhal-os mais na miséria em que elles de debatem; não é de cadeia que elles carecem, mas de proteção e auxílio.”
João Bonumá também estudou o “Regimem da Soldada” em artigo publicado em um jornal em 24 de maio de 1912, provavelmente em Santa Maria, cujo sistema, ainda baseado nas Ordenações Filipinas, permitia que pessoas participassem de um pregão realizado depois das audiências, em que crianças com mais de sete anos eram levadas por famílias “per soldada”, para serem educadas.
Ao exercer a função de juiz de órfãos, descobriu “escabrosidades” cometidas contra os pequeninos através desse instituto. Segundo ele, “famílias ha, (...) que timbram em procurar orfhãs ainda na primeira infância, que ellas criam em casa como amas seccas, desmoralizando as com a pratica de todas as baixezas e reservando-as para, quando chegarem ao raiar da puberdade, servirem de amantes, de borregas de seus filhos, evitando assim que estes se entreguem á prática de actos, que a medicina diz serem nocivos e communs nos rapazes, ou então que se pervertam na immundicie dos prostíbulos, onde a sua natural inexperiencia os leva a serem fatalmente victimas das molestias venereas mais atrozes.”
A mesma sociedade que recorrentemente busca saída para a delinqüência infantil no aumento do rigor do direito penal, em torno desse artigo fez, “...um silêncio gelado, um mutismo sepulchral.. Não despertou um commentario siquer, nenhuma objeção lhe foi alevantada.”
Esse estudo, praticamente desconhecido, revela o espírito magnânimo de Bonumá e precisa ser revisitado, se não para resolver os problemas que aí estão, ao menos para que possamos constatar que eles ainda hoje são os mesmos.
Mas foi no estudo do Direito que ele haveria de dar a sua maior contribuição ao país, lamentavelmente interrompido pela ingrata fatalidade de sua precoce morte, na melhor fase de sua produção intelectual. João Bonumá foi um grande processualista e o que escreveu na única edição de sua obra em 1946 é um verdadeiro monumento à ciência do processo. “Se a sentença pudesse ser proferida logo após a solicitação da parte interessada...”, dizia ele, “...não haveria necessidade de processo. As coisas se passariam sumariamente, com a instantânea declaração e aplicação do direito. Mas isso nunca foi possível, a não ser em casos perfeitamente excepcionais. A provisão é sempre o resultado final de uma longa série de atos que se sucedem uns aos outros, formando um complexo de atividades dos interessados, do órgão jurisdicional e de terceiros (...) formando todos uma unidade em relação ao fim que se tem em vista conseguir.”
A referida obra, de profunda maturidade intelectual, saudada na Argentina por Santiago Sentis Melendo como “um tratado completo de la materia sobre la base legislativa del derecho brasileño y la base científica de las modernas corrientes doctrinales...” (Revista de Derecho Procesal, 1947, 1a parte, p. 50), foi haurida num período cujo início dos estudos datam de 1935, quando escreveu “Do juízo arbitral”. Nele é examinado o Código de Processo Civil e Commercial do Estado do Rio Grande do Sul (lei 65, de 15 de janeiro de 1908), cujos primeiros 36 artigos são destinados à regulação da solução privada dos conflitos e de outro importante estudo dado conhecimento em 1936, quando publicou o artigo “O Processo e seu Conceito”.
Nesse estudo com verdadeiro tom profético, ao discorrer sobre a função do processo, relembra o ensinamento de Ihering à época, ao afirmar que “Julgar um direito como se faria com um sistema filosófico, seria um erro profundo. O direito não deve ser considerado sob o ponto de vista de seu mérito intelectual, de ordenação lógica de seus membros e de sua unidade. Pouco importa que, sob êsse aspecto, êle pareça uma obra de arte, porque não é aí que reside o seu valor. Êste se encontra inteiro nas suas funções, isto é, na possibilidade de sua realização prática. Que importa que uma máquina apresente o aspecto de uma obra de arte, se, como máquina, ela é imprópria para o uso.”
João Bonumá foi genial e quando editou sua mais importante obra já dominava, com profundidade, as modernas doutrinas processuais, como pode ser percebido pela leitura do seu trabalho, editado pela Saraiva, em 1946, e que chegou à mão de seus alunos no início de 1947, sem ficar devendo absolutamente nada aos demais estudos conhecidos à sua época nessa área.
Mas não produziu somente essa obra. Também desenvolveu trabalhos noutras áreas, entre os quais se destaca a tese de cátedra “O Bloqueio Marítimo e o Direito Internacional” (Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1936, 191p). Nesse trabalho ele tratou de temas ainda incipientes sob o ponto de vista dessa disciplina, que somente viria a desenvolver-se verdadeiramente na década seguinte, após findada a Segunda Guerra Mundial.
Além de serem examinados os principais tratados sobre o assunto, foram estudadas situações interessantes, como a do bloqueio promovido pela Inglaterra contra a Grécia em 1850, para que ela desse satisfação sobre uma dívida de 21.925 libras esterlinas a um cidadão Inglês. O bloqueio foi cessado após quase deflagrado uma guerra com a Rússia, pelo pagamento de uma indenização de 150 libras esterlinas.
O referido trabalho tem hoje, entre tantas outras, a virtude de demonstrar quanto evoluiu nosso Direito Internacional, especialmente ao dar conhecimento de situações em que o bloqueio marítimo era utilizado para resolver problemas privados dos governantes.
João Bonumá também levou a cabo outras investigações, como o “O crime do sono” (1933), estudo de Direito Penal, tendo ido buscar na cultura Grega e na psicologia, os fundamentos para demonstrar que os atos praticados durante o sono não constituem matéria criminal.
Ele também foi Juiz de Órfãos (registrado em uma passagem do livro sobre menores), professor do que hoje seria o ensino médio e Juiz Distrital (Municipal) em Santa Maria. Ainda desempenhou as funções de Subchefe de Polícia no governo de Borges de Medeiros (1925/28). Em 1935, transferiu-se para Porto Alegre, tendo sido aprovado em concurso para a Faculdade de Direito onde lecionou “Direito Judiciário Civil” até o ano de 1951, quando se aposentou por motivos de saúde, sendo substituído por Galeno de Lacerda, seu professor assistente.
Exerceu também o cargo de Procurador Geral do Estado no Governo de Walter Jobim (1946 a 1950), tendo redigido uma série de célebres pareceres. Também foi vice-presidente do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, conselheiro da OAB e um atento observador dos acontecimentos de Porto Alegre, conforme registram os quatorze volumes encadernados de uma coletânea de matérias que organizou e anotou de próprio punho, entre 1938 e 1941, sobre os fatos jurídicos relevantes desse período, dentre os quais os debates a respeito do nosso primeiro código nacional processo.
Em 15 de junho de 1953, em sua fazenda em Júlio de Castilhos João Bonumá faleceu em decorrência de problemas cardíacos que o haviam obrigado a jubilar-se, tendo se dedicado aos estudos até seu último dia de vida.
Seu dileto e ex-aluno, Ministro Paulo Brossard, relata um fato ocorrido certo dia em que visitou o professor João Bonumá ainda em Porto Alegre. Nessa oportunidade, ter-lhe-ia dito: “veja só Brossard como são as coisas. Logo eu, que sempre tomei gosto pela literatura, ao aposentar-me imaginei poder me dedicar à leitura de nossos clássicos. Todavia fui proibido pelo meu médico. Não posso emocionar-me e, desde então, para passar o tempo, dedico-me à leitura do Direito Romano.”
Sua bisneta Lívia Bonumá, que atualmente reside em Tupanciretã, têm, entres outros livros importantes que pertenceram a João Bonumá, as obras completas de Nietzche traduzidas para o francês por Henri Albert Huitieme, em 1902, e os seis volumes sobre a teoria positivista de Augusto Comte lidas e notadas à mão por ele.
Que o cinquentenário da morte de João Bonumá sirva de motivo para que os cultores do direito em nosso país, especialmente o povo gaúcho que ele tanto honrou, revisitem sua obra.

NOTA. Agradeço a Marco Verri, da Livraria Nova Roma, pelo auxílio na localização de suas obras, ao Ministro Paulo Brossard pela gentileza aceitar falar sobre ele, a Eduardo e Lívia Bonumá, seus netos, que guardaram nestes últimos anos importantes arquivos que servirão para ajudar, no futuro, a conhecer um pouco melhor a história do Direito em nosso Estado.

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