quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Ciência e conhecimento no sistema de inteligência humano




Apesar de haver muitas vezes explicado alguns de meus conceitos a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las muito claramente, contudo, quando as repetiam, percebi que quase sempre as mudavam de tal maneira que não mais podia considerá-las minhas. Com essa intenção, prezo muito pedir aqui, às futuras gerações, que jamais acreditem nas coisas que lhes forem apresentadas como provindas de mim, se eu mesmo não as tiver divulgado.
René Descartes

Advertência
Os temas abordados neste escrito, em grande parte, foram desenvolvidos no curso de reuniões realizadas pelo grupo de estudos sobre inteligência Sebo Café que, desde 04 de abril de 2006, dedica-se ao exame das estruturas formais do entendimento humano. A criação do grupo deu-se pela constatação do quanto são, ainda hoje, insuficientes as informações relativas ao funcionamento do sistema que permite ao ser humano pensar.
Embora tomando emprestadas as provocações feitas por René Descartes e por Immanuel Kant, em suas épocas, como ponto de partida para examinar esse tema, o método escolhido para o estudo foi o de não aceitar, jamais, resposta ou argumento algum, por mais importante que sejam considerados, fundados apenas no discurso da autoridade de outrem.
Não admitir nada que não pudesse ser totalmente entendido e explicado no próprio grupo foi rigorosamente observado em mais de quatrocentos encontros. Agora, chegou a hora de verificar se foi possível avançar no exame desse tema.
Por isso, aos que eventualmente tiverem interesse em entender os temas que serão expostos a seguir, não há outra alternativa metodológica que não seja a de acompanhar o encadeamento de todas as partes do estudo para verificar se foram identificadas integralmente as questões que precisam ser enfrentadas para serem resolvidas. Depois de cumprida essa etapa, também é necessário examinar se o método escolhido para a análise é o mais adequado, visto que a primeira dificuldade a considerar é como estabelecer um critério seguro para distinguir, durante a realização dessa tarefa, os dados oriundos da natureza fenomênica, do sistema de ideias, constituído por meio da razão, para relacioná-los e pô-los em ordem.
Destacar a existência desses dois âmbitos de inteligência[1] é de fundamental importância nessa investigação, pois é só isso que permite ao filósofo desenvencilhar-se e eliminar, em definitivo, o engodo largamente utilizado pelo ceticismo[2] de expor problemas relativos às ideias e de cobrar explicações referentes a questões que dizem respeito à natureza fenomênica. Foi graças a esse artifício que, ao longo dos últimos séculos, os céticos lograram êxito em negar a possibilidade de constituição de um sistema rigorosamente científico na filosofia[3].
Assim, feitas essas considerações, alerta-se de que será difícil entender, pelas razões que serão expostas nos tópicos a seguir, as ideias ordenadas neste estudo se não for aceito, como método, sempre, buscar distinguir, com rigor, ciência e conhecimento[4]. Esses dois temas, como veremos, embora aparentemente tratando do mesmo assunto, são totalmente distintos e, conquanto estejam relacionados entre si, divergem completamente em relação às suas fontes.
Aos que não aceitarem o método proposto fica a advertência: não será possível examinar, com um mínimo de ordem, as ideias que serão expostas a seguir.
Organismo e inteligência natural
Os processos que permitem a constituição de sistemas de inteligência e, também, o modo pelo qual o organismo desenvolve competências para tornar-se racional são resultantes de complexos sistemas animados por meio de instruções naturais. A causa inicial dessas instruções talvez jamais seja desvendada nos domínios das ciências da natureza pois, muito embora os estudos avancem nas investigações sobre eles, o que os põem em funcionamento é ainda totalmente desconhecido para que pudesse ser relacionado pela ciência.
No entanto, mesmo considerando esse impedimento, é preciso reconhecer que, por mais rudimentar que seja o organismo, há sempre, em todos, em funcionamento, um extraordinário sistema natural de inteligência que os dota de competências para relacionar-se com o meio e programar-se por algoritmos naturais que os permite sobreviver, reproduzindo-se, permanentemente, até que cumpram com um ciclo natural que tem início na fecundação e que se encerra com a morte.
Então, uma vez reconhecido que existem sistemas naturais de inteligência nos organismos, a etapa seguinte do estudo deve ser a de entender e de tentar explicar como funciona ao menos um deles. Um organismo, que no curso do processo evolutivo produziu e aprimorou sofisticados mecanismos de relacionamentos, os quais, embora principiem de forma natural, em dado momento do seu desenvolvimento, permitem que o homem se emancipe totalmente da natureza fenomênica ao constituir e a passar a fazer uso de sistemas conduzidos por meio de racionalidades instrumentais.
Ordenar todas essas questões, discorrer sobre cada uma delas e verificar como relacionam-se entre si é a tarefa e o ponto de partida da investigação a ser feita no exame. E, como a fonte para fazer tudo isso é a razão e o meio é a escrita, nenhuma outra etapa do estudo pode ser mais relevante para prosseguir do que a de inventariar previamente com o que será permitido contar para continuar, com um mínimo de ordem, nessa empreitada.
Universo fenomênico
Identificar os dados da natureza fenomênica e os problemas metafísicos[5] que devem ser tomados em consideração para determinar as fontes materiais e ordenar a estrutura formal da razão humana, e, examinar as relações que se estabelecem entre homem e universo na constituição das referências que os distinguem, é o método que torna possível explicar como funciona a racionalidade humana.
Assim, ao iniciar essa tarefa, imediatamente apresenta-se para ser desvendado, embora em um primeiro momento de maneira um tanto confusa, o universo sensível. O universo como algo que principia com aparente falta de ordem, mas que, não obstante, se apresenta para ser entendido como extraordinária manifestação da natureza enquanto totalidade complexa.
O primeiro dado a ser considerado, portanto, é o da existência do universo, tomado inicialmente apenas enquanto totalidade fenomênica. Outra questão, também a ser examinada, é de que nele nada é estático. Todos os processos fenomênicos que o compõem se apresentam a serem investigados como estando ligados entre si e em contínuo e permanente movimento no espaço.
Não há como negar, portanto, esse dado objetivo da natureza, da existência do universo fenomênico representado por múltiplos e complexos processos em movimento no espaço que tem, no homem, uma de suas partes.
Explicar, então, o que permitiu que, mesmo sendo o homem apenas uma parte do universo, ele pudesse desenvolver sistema de inteligência que o permite entender, pensar e falar sobre o que pensa do que entende a respeito de si e da totalidade do qual é parte, é a tarefa a ser cumprida. E, se tudo pode ser refutado por meio da dúvida, salvo a irredutível hipótese de o filósofo negar a própria existência ou a existência do universo fenomênico, tem-se como necessário partir-se para o exame da próxima etapa com o reconhecimento da existência do universo, composto por complexos processos fenomênicos, todos ligados entre si, e em contínuo e permanente movimento no espaço.
Feito isso, ou seja, aceito que o universo é totalidade em movimento, é mudança objetiva no espaço, pode-se seguir adiante com o propósito de resolver um aparente paradoxo da existência de uma parte que busca compreender o todo na medida em que compreende a si mesma. Essa questão, sem dúvida, não é algo simples, pois se trata de uma tarefa em que a parcela do todo, na medida em que se entende, ordena o universo de sua existência na mesma medida em que produz o mundo onde essa explicação ocorre.
Pôr em ordem, então, as relações entre totalidade e parte é o método a ser empregado para compreender quais são e como se organizam as noções inteligíveis tomadas em representação do mundo natural e, também, como são constituídas as referências ordenadoras do sistema de inteligência utilizadas pelo organismo nas relações que o permite entender e racionalizar o universo fenomênico.
Matéria e forma no sistema de inteligência
Tomado em consideração o universo fenomênico como totalidade em movimento e o organismo como parte, a próxima questão a ser tratada diz respeito às relações que se estabelecem entre ambos em face das afetações recíprocas que decorrem dos processos fenomênicos aos quais estão submetidos.
Todo fenômeno, ao ser considerado em suas particularidades, apresenta-se para a inteligência como algo que possui matéria e forma. A matéria do fenômeno é a parcela do universo impressa no organismo por meio das sensações; a forma, as sínteses das relações que o organismo produz na distinção da matéria, considerando-a em face do todo ou em relação ao diverso de si mesma.
A matéria é sempre revelada pelas sensações. A forma, pelas sínteses das imputações em razão das impressões produzidas por outras matérias, ou em face do todo em movimento. Essa questão é fundamental para desvendar a estrutura da inteligência, pois é aí que reside o mais importante tópico a ser distinguido imediatamente depois da constatação de que o universo produz relações de inteligência ao ser materialmente impresso na parte, por meio dos fenômenos que decorrem do todo em movimento.
As relações entre matéria e forma são os meios utilizados na constituição do sistema de inteligência racional. A matéria, pela capacidade de receber representações de fenômenos do mundo natural; a forma, pelas sínteses de imputação da matéria, quando considerada em relação à mudança objetiva no espaço ou ao diverso de si mesma.
A matéria do fenômeno é a parcela do universo que a sensibilidade imprime no organismo; a forma, as memórias das sínteses produzidas pelo organismo em face da especificidade da matéria. Essas sínteses produzem as referências que serão utilizadas na constituição do acervo responsável pelas noções tomadas pelo organismo na ordenação dos dados relativos ao mundo natural, ou seja, formadores da razão.
Para demonstrar a infinidade de formas possíveis na matéria das sensações, basta imaginar, apenas como exemplo, a multiplicidade de sínteses que um único meio de relacionamento entre o organismo e o universo fenomênico permitiria que fossem produzidas pelas diferentes e possíveis manifestações sonoras (=matéria) decorrentes de todas as diferentes palavras (=formas) pronunciadas por todos os sujeitos, em todas as línguas, de todos os povos existentes no planeta. Esse exemplo revela o quanto são infinitas e diversas as sínteses que apenas a matéria da audição poderia produzir ao ser considerada em face da diversidade de suas formas[6].
A matéria é sempre deduzida por meio da análise; a forma, por meio da síntese[7]. Pela análise, quando o organismo é impresso pela matéria do fenômeno; com a síntese, pela memória da relação de imputação que a distingue a matéria do diverso de si mesma. Toda a matéria do conhecimento apresenta-se, sempre, para a racionalidade, por meio de diferentes formas que, por sua vez, por serem sínteses de relações, constituem todos os dados que são utilizados pela racionalidade na representação transcendente do mundo natural.
Essa questão, deveras complexa, exige certo comprometimento racional para ser adequadamente compreendida[8] pois, o modo pelo qual é tratada a transição do imanente ao transcendente determina a constituição das referências utilizadas no entendimento do tema.
Organismo e inteligência
A inteligência analítica, típica dos seres vivos, decorre de competências naturais que permitem ao organismo acumular, processar e ordenar informações sobre o meio para incorporar elementos e associar-se a outros com a finalidade de viabilizar sua sobrevivência e reprodução.
O organismo move-se, nesse universo, segundo instruções que se processam por meio de fontes ainda não esclarecidas. Mas o certo é que ele atende a instruções naturais cujas origens, salvo fazendo-se uso da capacidade humana de produzir sistemas pautados unicamente pela imaginação, estão completamente fora do âmbito de cogitação em um estudo que tenha apenas por objetivo explicitar como se dão os processos naturais que permitem que ele entenda o meio em que vive.
É essa competência que permite ao organismo compor o acervo dos dados que serão acumulados durante seu ciclo de vida e que irão somar-se aos que foram recebidos por legado da sua espécie[9]. A maneira pela qual isso ocorre é consequência de processos que, a depender de fatores emergentes das realidades natural e cultural, produzirão o sistema ordenador da sua racionalidade que se perpetuará durante toda a sua existência.
Inteligência racional
Como examinado nos tópicos anteriores, a matéria do fenômeno é a parcela do universo impressa no organismo e ordenada pelo sistema de inteligência por meio das sensações, sendo ela a responsável pela produção de sínteses dos dados primários do sistema de inteligência, cujas memórias[10] constituirão a matéria-prima na racionalização do universo fenomênico.
Todo o acontecimento natural relevante para a inteligência racional é resultado de imputações que decorrem das relações estabelecidas entre o mundo natural e o ser[11]. São sínteses de relações de ordenação da realidade que se processam por meio de sensações[12] exógenas e de sínteses de imputação, produzidas por meio de sensações endógenas[13].
A inteligência tem uma base objetiva e outra subjetiva. A objetiva é a resultante das sínteses de impressões produzidas pela totalidade fenomênica em curso, no espaço; a subjetiva, das sínteses das imputações em face do organismo. A base objetiva é a primeira e a mais antiga representação do mundo natural e é impressa pela matéria do fenômeno no organismo por meio da sensibilidade. Embora o organismo seja parte da totalidade, ao ser impresso, ele separa-se da base objetiva na mesma medida em que compõe, por meio de sínteses de imputação, o acervo das memórias que permitirão ordenar as relações de inteligência com a parcela da totalidade na qual se insere[14].
Universo em movimento e impressão sensível são, portanto, as duas partes do sistema que historicamente constituem as bases da racionalidade e que tem origem em um sistema de imputação ordenado por instruções naturais que coordenam a existência do organismo. São cinco os sentidos de ordenação exógenos, que compõem a capacidade de receber impressões do mundo natural e dois endógenos, que relacionam matéria e forma por meio de sínteses de imputações.
Enquanto os sentidos exógenos permitem o acúmulo de informações e de conhecimentos sobre o mundo natural, os endógenos produzem as sínteses de memórias de imputação que permitem racionalizar o mundo fenomênico e constituir as referências ordenadoras do sistema de inteligência.
Assim, a inteligência racional é o resultado final da capacidade de a parte ordenar a matéria do universo por meio de sensações e, na medida em que isso ocorre, a parte produz o mundo de sua existência.
Com essas considerações, restam claros, então, que são as memórias das sínteses de imputação de relacionamentos entre matéria e forma que permitem ao organismo constituir um mundo que, como tal, não é nada mais do que universo ordenado por meio de suas sensações.
É por isso que nenhum mundo é igual ao outro. Somente o fato de os organismos ocuparem espaços diferentes no âmbito do universo fenomênico faz com que, ao o ordenarem relacionando-o a si, constituam, igualmente, mundos particulares. O mundo racional é, portanto, memórias de sínteses de relações estabelecidas entre o organismo e o universo fenomênico, produzidas pelas impressões resultantes das relações entre totalidade e parte em movimento.
Identificadas essas importantes questões, relativas ao sistema de Inteligência, pode-se avançar um pouco mais no estudo para verificar os diferentes âmbitos de ordenação desses temas, pois enquanto as sínteses das impressões constituem a matéria do conhecimento, as sínteses das relações de imputação compõem a forma da inteligência: o organismo conhece porque sente e, na mesma medida em que relaciona, pensa sobre o que sente.
Conhecimento e ciência
Uma vez ordenadas estas questões é possível afirmar, com segurança, que a razão humana é um sistema de memórias de sínteses de impressões[15] e de sínteses entre memórias de impressões[16], que embora tenham origem nas sensações impressas no organismo pelos processos fenomênicos, resultam de produção transcendente que toma o mundo natural como modelo de ordenação.
São essas memórias que permitem à razão emancipar-se do universo fenomênico para tomar a si mesma como fonte de dados utilizados na constituição do sistema racional. Ou seja, em dado momento do desenvolvimento do sistema de inteligência, a razão abandona o uso das sínteses das impressões produzidas pelos fenômenos do mundo natural e passa a utilizar apenas as memórias dessas sínteses na produção de novas sínteses.
Embora em um primeiro momento isso pareça uma questão demasiadamente complexa, não é impossível de ser resolvida. Apenas exige o enfrentamento do paradoxo[17] de expor, com um mínimo de ordem, como pode a razão emancipar-se da gnoseologia fenomênica que a produziu, para entender e explicar, sem ela, como essa emancipação ocorre!
Esse é o principal motivo pelo qual a única maneira de levar este estudo adiante é exercitando as competências obtidas por meio da fenomenologia para entender que conquanto pareçam tratar dos mesmos temas, os dados que a inteligência obtém por meio das sínteses de impressões produzidas por fenômenos são totalmente diferentes dos dados que a razão produz por meio de sínteses entre as memórias dessas impressões. As primeiras estão relacionadas ao mundo natural, à fenomenologia e ao conhecimento; a segunda, compõem os dados produzidos pelas ciências[18] (espírito, ideias).
Sem distinguir natureza e espírito, o homem, ao pensar sobre si e sobre o mundo que o cerca, confunde as ideias[19], que têm origem em suas sensações, com o sistema que sua razão organiza, tendo por referência as sínteses das memórias que são produzidas a partir de relações entre memórias das suas sensações.
Essa capacidade de produzir sínteses pode ser pura ou empírica. A síntese é empírica quando está originalmente relacionada a modelos tomados dos dados relativos às sensações. É pura quando a síntese não está associada a nada[20], sendo produzida unicamente por meio de relações.
A capacidade de produzir memórias a partir de sínteses de impressões é distinta da capacidade de produzir memórias relacionando memórias das sínteses das sensações. Esse tópico é o mais importante, pois é aí que reside o elemento distintivo da inteligência humana e é isso que permite compreender os motivos da importância da distinção entre conhecimento (que são memórias de sínteses de impressões) e ciência (que são memórias de sínteses de relações entre memórias)[21].
Conhecimento e ciência organizam temas diversos, mas basta examinar os estudos de filosofia para constatar que ambos são utilizados indistintamente quando o assunto diz respeito ao exame dos meios utilizados para ordenar o mundo natural e a razão humana, não havendo, até então, qualquer estudo que tenha delimitado, claramente, o objeto de cada um deles.
Não distinguindo conhecimento e ciência, não há como o homem separar o que é resultado de suas relações com o mundo natural[22] daquilo que tem origem na sua capacidade de imaginar. Não lhe sendo mais possível distinguir o que sente, do que pensa, uma imensidade de ideologias[23] rapidamente adjudicam seu espírito, de tal forma, fazendo com que perca totalmente a sua autonomia. E a contar de então, a razão, ao invés de ser ampliada por meio de descobertas e de conhecimentos passa a ser produzida unicamente por meio de proposições[24], fazendo assim com que o homem se torne, paradoxalmente, no final desse processo todo, um escravo de si mesmo.
O conhecimento é o instrumento pelo qual o organismo estabelece relações de descoberta com o universo fenomênico, enquanto a ciência é um sistema de proposições que o sistema de inteligência formula para pôr em ordem o mundo natural[25].
O conhecimento é a parcela do universo fenomênico que resulta das impressões produzidas no organismo por meio das sensações; ou seja, a parte que trata da matéria do fenômeno e que é impressa no organismo e os dados que o sistema de inteligência armazena para compor o acervo que posteriormente será relacionado pelas ciências.
Então, mais uma vez, deixa-se claro que são totalmente distintas as memórias decorrentes de sínteses de sensações, das memórias das sínteses produzidas relacionando memórias de sensações. As memórias das sínteses de sensações se impõem, são impressas no organismo por meio dos sentidos[26] e as memórias de sínteses de relações entre memórias de sensações são produzidas unicamente a partir das memórias. A primeira é consequência de um sistema de imputação; a segunda, resultado de um sistema de proposições e, embora o conhecimento seja mais importante por formar a base do sistema de inteligência, a ciência é a que goza de mais prestígio por dar autonomia à razão.
É fácil perceber, então, que as memórias produzidas pelas sínteses das sensações constituem as verdades e o conhecimento humanos e que as sínteses decorrentes de relações entre as memórias das sensações são constitutivas das ciências[27] e das crença[28]s.
Embora o universo cognoscível esteja reduzido apenas à parcela que está relacionada às sensações, a capacidade de produzir memórias a partir de sínteses entre memórias é o que permite à razão ampliar horizontes para âmbitos cujas fronteiras são dadas apenas pela capacidade de imaginar.
O mundo racional, portanto, não é apenas consequência das descobertas e do conhecimento humano, mas, e especialmente, da ciência: é o resultado, como pode ser constatado, das razões até aqui expostas, da parcela do universo impressa no organismo por meio das sensações e, igualmente, de produção autônoma da razão por meio das relações que a sua capacidade de imaginar lhe permite.
Razão civilizada
Feitas essas considerações, não restam dúvidas de que a razão principia e se desenvolve na mesma medida em que relaciona e põe em ordem as sínteses das memórias das impressões produzidas no organismo por meio das sensações. As sensações são as responsáveis pelo fornecimento dos dados primários, oriundos da natureza fenomênica, que permitem o funcionamento do sistema de inteligência e sem elas não haveria como o organismo produzir as sínteses de imputações entre matéria e forma, base sobre as quais se assenta toda a racionalidade.
São as memórias das sínteses das relações entre as memórias de sínteses das impressões que compõem o acervo das representações transcendentes do mundo natural. Com elas, a razão ganha autonomia e cria as condições subjetivas para constituir uma racionalidade que, embora inicie por meio de impressões, se desenvolve por relações autônomas, não mais referenciadas em memórias de sínteses de impressões[29], mas em memórias de sínteses de relações entre memórias[30] oriundas de impressões produzidas por fenômenos do mundo natural.
Na medida em que esses meios de relacionamento se desenvolvem e se aprimoram, a razão consegue ir além do sistema orientado pelas experiências sensíveis e passa a produzir sistemas de inteligência ordenados apenas por relações[31]. Com isso, ela adquire as competências que a permite afastar-se totalmente do mundo natural para constituir acervos que não decorrem mais de verificação das relações de causa e consequência, obtidas das sínteses das impressões produzidas pela natureza fenomênica, mas unicamente de si mesma, ou seja, de sínteses entre suas memórias.
A partir de então, a razão deixa de ser o resultado das impressões produzidas pelo universo fenomênico e das relações entre totalidade e parte, para ser um sistema orientado por memórias de relações que apenas tomam emprestado, como modelo transcendente, os dados oriundos do mundo natural. Passa a ser um o sistema de inteligência que não mais resulta da ordenação dos dados obtidos da natureza fenomênica, por meio de descobertas e do conhecimento, para ceder lugar a um sistema de proposições produzidas unicamente por meio da capacidade racional.
Posteriormente, com a introdução de ideologias produzidas pela cultura e introduzidas no sistema de inteligência racional por meio da tradição oral[32], essas relações consolidam-se de tal forma, que a razão perde completamente a noção da objetividade fenomênica, tornando-se escrava do transcendente produzido por meio do sistema que a civilizou.
Compreendendo isso, fica fácil perceber que o mundo civilizado, antes de ser natural, é um mundo inventado pela cultura que somente existe e se torna possível pelo fato de a razão submeter-se a um sistema que a retira do ambiente de inteligência que emerge de suas relações com o universo fenomênico, por outro, construído por meio de relações culturais.
O mundo civilizado, então, antes de ser natural, é inventado pela cultura. Embora esse tema possa render outras tantas questões muito interessantes a serem examinadas, mas como o objetivo deste estudo é apenas demonstrar a importância da distinção entre conhecimento e ciência como meio de ordenação do sistema de inteligência utilizado pela razão, espera-se, com as questões postas até aqui, ter cumprido com o propósito anunciado no início deste escrito, ou seja, expor, com um mínimo de ordem, como é possível examinar as relações existentes entre universo e razão civilizada.
Assim, resumindo, é possível concluir  com alguns postulados deste estudo: a inteligência humana[33] é natural; todo o conhecimento tem origem em sensações; o conhecimento é resultante de impressões produzidas por fenômenos na capacidade de receber representação do mundo natural; a sensação compõe a matéria da inteligência; a forma da inteligência são as relações entre matérias ou a mudança objetiva no espaço; pensar é relacionar; relações são puras ou empíricas; a relação empírica dá-se entre impressão fenomênica e a sensibilidade; relação pura não possui representação no mundo natural e também: universo é totalidade em movimento no espaço; mundo é universo ordenado por sensações; entendimento é submissão da matéria à forma; inteligência é a capacidade de relacionar em ordem e razão são memórias relacionadas entre si.


[1]A distinção rigorosa entre natureza e espírito é o ponto de partida do estudo, pois, enquanto um diz respeito à objetividade do universo fenomênico, o outro refere o sistema inventado pelo homem para servir de representação, quando ele pensa sobre o mundo natural.
[2]O ceticismo faz do homem um trapaceiro de si mesmo.
[3]A filosofia é uma ciência. A ciência das ciências.
[4] Não distinguindo natureza e espírito o indivíduo, ao pensar sobre si e sobre o mundo que o cerca, o faz de um modo tão confuso ao ponto de jamais conseguir distinguir o que tem origem em suas relações com o mundo natural, daquilo que é produto apenas de sua capacidade de imaginar.
[5]Metafísica é o arcabouço de ideias que os antigos utilizavam como modelo transcendente na ordenação do mundo natural.
[6]Da fonética à fala.
[7]O ambiente sintético da ciência, 2008.
[8]Depoimentos de Descartes e Kant registram que ambos precisaram de dez anos para tornar possível a distinção das fontes imanentes e dos dados transcendentes de ordenação da razão.
[9] De que outra forma os pássaros nasceriam sabendo fazer seu ninho, alguns extremamente complexos, como o do joão-de-barro, se não pela existência de um sistema orgânico de inteligência que permite às espécies transmitirem, de forma natural, informações aos seus descendentes?
[10]Conexões orgânicas que relacionam diferentes âmbitos do sistema de inteligência por meio de memórias de imputação.
[11] O universo causando fenômenos e o organismo produzindo síntese
[12] Sensação é o que resulta da impressão produzida por fenômenos na capacidade humana de receber representação do mundo natural e compõe a matéria da inteligência.
[13] O organismo atende a duas instruções naturais, coordenadas pelos seus sistemas de reprodução e de sobrevivência.
[14] Com isso, o organismo produz o mundo. O seu mundo particular onde vive nesse universo todo.
[15]Embora este estudo não tenha o propósito de examinar os mecanismos que compõem o sistema de inteligência, é preciso reconhecer que o organismo funciona com diferentes níveis nessa competência. As memórias das sensações são descobertas de baixo nível, orgânicas, presentes em todos os animais, e que atuam diretamente com as impressões produzidas pelo mundo natural.
[16]Já, aqui, são proposições. A nova memória é produzida por meio de relações entre memórias de sensações. É uma memória de segundo nível (produzida por relações que tomam como modelo os dados obtidos pela memória de baixo nível). Sempre registrando que esse sistema pode-se dar por sínteses puras, como nas proposições matemáticas.
[17]Entender o problema a ser resolvido tendo-se claro que, na medida em que se entende o problema, ele se resolve.
[18] Ciência é um sistema de ideias relacionadas entre si.
[19] Sínteses analíticas, decorrentes de relações entre matéria e forma.
[20] A matemática é exemplo disso. A matemática é a ciência dos relacionamentos.
[21] Embora seja perfeitamente possível formular uma proposição pela qual se afirme que uma superfície está toda ela à mesma distância de um centro comum, seria impossível imaginar essa figura sem que ao menos, em um dia, fosse dado ao organismo os dados fornecidos pela empiria.
[22]Aqui reside uma questão interessante e que diz ao sentido da expressão “espiritualidade” entre os Mbyá-guarani. Para eles, desenvolver a espiritualidade é pôr em ordem o sistema de inteligência com o mundo natural, diferente de alienar-se por meio do transcendente, como o é o que ocorre nas culturas “civilizadas”.
[23] Ideologias são instituições, a exemplo do circo, que são criadas para distrair os participantes de onde os fatos ocorrem, inserindo-os em cena por meio de uma teatralidade que os aliena do mundo real.
[24]Sistema de relações apenas entre juízos.
[25] Ciência são sistemas de ideias relacionadas entre si. A ciência é instrumental ou experimental. Ciência instrumental é a ciência das relações; Ciência experimental é a ciência das proposições e das expectativas sobre fatos do mundo natural.
[26]Não obstante ainda seja mal explicado pela psicanálise, a prova da autonomia entre a memória das sensações e a racionalidade é dada pela descoberta dos traumas, cujo tratamento é feito com a descoberta de fatos relevantes da existência que em razão da idade, acidentes ou doenças não chegaram a ser racionalizados.
[27]Sínteses produzidas por relações que não são memórias de sensação alguma respondem pelas certezas no âmbito das ciências.
[28] Crença é uma ciência ordenada por expectativas.
[29] Essas memórias são as que os indivíduos constituem como as suas verdades.
[30]Constituem as crenças que, embora tendo as verdades como fundamento, ganham autonomia e existência própria.
[31] Isso explica as razões pelas quais a matemática é uma ciência que não tem matéria, apenas forma.
[32]E a palavra se faz mundo. Embora as proposições linguísticas tenham por finalidade estabelecer relações de imputação entre o homem e o mundo natural, nenhuma outra invenção da inteligência racional serve tanto aos sistemas ideológicos e de alienação humana quanto a palavra.
[33]A capacidade de produzir memórias a partir de memórias das memórias é o elemento distintivo da inteligência humana (o homem só é homem pela capacidade de crer).

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