O ENSINO JURÍDICO EM CRISE
Paulo J. B. Leal
O ensino jurídico está em crise. Cada vez mais se formam
profissionais do direito sem as mínimas condições para o exercício das
habilidades em relação às quais o curso propõe-se a capacitar. Em razão disso,
fala-se, dimensionando-se a crise, que o "os cursos jurídicos estão
falidos".[1]
Em face de
tais considerações, seria de perguntar-se, qual a razão dessa crise e o que é -
se é que é - possível fazer para resolvê-la?
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que a sociedade
contemporânea se organiza e
vê o
mundo com olhar diferente daqueles em relação aos quais nos acostumamos
trabalhar. Durante cerca de três mil anos, o homem desenvolveu habilidades para
compreender o mundo a partir de idéias e conceitos talhados e registrados pela
escrita, matéria-prima para o desenvolvimento do saber. Através dela foi
possível descrever e visualizar o mundo para crítica e reformulação do
conhecimento. Conhecer era, ao mesmo tempo, ter noção dessas idéias,
desenvolver a capacidade de criticá-las.
Com a revolução tecnológica isso tudo mudou. Vivemos num mundo em
que o saber não é mais uma apreensão do conhecimento reflexivo e abstrato. Para
o mundo contemporâneo o conhecimento é quase sempre visual e concreto (embora
essa realidade possa ser, também, virtual).
A televisão, o cinema e, mais recentemente, a internet permitem
que quase tudo possa ser visto. Idéias que, outrora somente eram possíveis ser
demonstradas mediante esforço de abstração, hoje podem ser facilmente visualizadas
pelas pessoas. Tudo é passível de conhecimento através da visão, provavelmente
um dos sentidos mais antigos do homem.
Essa revolução propiciou a onipresença de um dos principais
instrumentos dessa nova forma de conhecimento: a televisão. Ela invadiu todos os lares, conquistou pessoas,
tomando-lhes quase todo o seu tempo disponível. Tudo é objeto das câmaras de
TV. Geografia, Religião, História, Política, etc e o conhecimento desenvolvido
pela leitura, pela abstração, cedeu espaço a mensagens cujos textos e
conclusões são hermeticamente fechadas por técnicas de marketing, que
privilegiam a mensagem final. A leitura foi substituída por audiovisuais, quase
sempre desprovidos de espaço para a crítica e reflexão (embora tragam,
invariavelmente, crítica e conclusão).
Esse meio de aquisição do conhecimento possibilitou uma revolução
na área das Ciências Exatas ao permitir a visualização de fenômenos que outrora
somente era possível mediante experimentação. Quase tudo pode ser representado
por esquemas que podem ser vistos: do big-bang à simulação dos efeitos
decorrentes de uma guerra nuclear.
Todavia para a compreensão de matérias afetas às áreas das
Ciências Humanas e Sociais (filosofia, antropologia, sociologia, direito, etc)
essa forma de assimilação do conhecimento não consegue responder às exigências
dessas disciplinas. A base teórica do direito está alicerçada no mundo do
dever-ser, ou seja, num universo construído mediante abstrações, com a
finalidade, entre outras, de regular a convivência humana.
Para que seja possível o estudo do direito, é necessário
compreender suas teorias, sua linguagem e seus institutos através de leituras,
de reflexões e do diálogo e isso não pode ser substituído eficientemente pelas
novas formas de assimilação do conhecimento.
Tércio Sampaio Ferraz
Junior afirma que estudar o direito "sem paixão é como sorver um vinho
precioso apenas para saciar a sede. Mas estudá-lo sem interesse pelo domínio
técnico de seus conceitos, seus princípios, é inebriar-se numa fantasia
inconseqüente".[2]
Ora, como seria possível compreender o fenômeno jurídico sem uma
preparação prévia e uma razoável (e mínima) formação filosófica a
instrumentalizar o educando para a compreensão de uma disciplina que se
organiza a partir de um mundo abstrato (=ideal) para somente após ser aplicado
ao mundo real?
A crise do direito, portanto, parece ser a crise da forma pela
qual assimila-se o conhecimento neste mundo da tecnologia. Não é por menos que
alunos, já no primeiro ano do curso, manifestam-se insistentemente para que
lhes seja propiciado acesso à prática, como se estudar direito fosse
manusear processos, assistir a audiências ou fazer petições. Esse pensamento
cada vez mais disseminado nas universidades, ignora que o fenômeno jurídico é
antes de qualquer coisa um fenômeno cultural,[3]
somente sendo possível seu estudo na medida em que for possível compreendê-lo,
ter claro seus institutos, sua linguagem e o método de análise do seu objeto.
E essa dificuldade não será superada somente com medidas
administrativas, com meras reformulações curriculares ou com o aumento de
investimento pelas faculdades de direito. A crise do ensino jurídico somente
será superada quando for possível compreender-se que o direito não é um dado da
natureza, mas uma construção da razão humana que precisa ser compreendida para
poder ser aplicada, criticada ou - quando não se adequar à sua finalidade maior
de fazer justiça - modificada.
Para superar tal obstáculo é necessário, entre outras coisas,
partir-se da premissa de que o aluno - em regra - conclui o curso de ensino
médio de forma precária quanto à sua capacidade reflexiva pela falta de
leituras e sem o domínio da linguagem a ser utilizada no estudo do direito.
É fundamental, portanto, o estabelecimento de um ponto de partida,
comum entre professor e aluno, para que seja possível o início de um percurso
tendo por objetivo o estabelecimento dos diálogos necessários à construção do
conhecimento jurídico.
O aluno, por sua vez, deve ser incentivado a perceber no curso de
direito a necessidade de leitura, estudo e reflexão, não havendo nada que possa
substituir o papel a ser cumprido por ele durante esse processo, e o professor,
de sua parte, precisa fazer perceber que o direito, embora com suas
especializações é, antes de qualquer coisa, um sistema a ser compreendido em
sua globalidade.
É fundamental que as coordenações dos cursos se convençam, de uma
vez por todas, da impossibilidade da realização de qualquer avanço sem especial
atenção às disciplinas que trabalham com a teoria geral do direito e de
matérias especializadas.
Por fim, é importante a criação de fóruns para possibilitar o
debate entre os professores das diferentes disciplinas, propiciando estudo
integrado do direito, rompendo com a visão de que é possível ensiná-lo de forma
compartimentada em áreas do saber hermeticamente fechadas para as demais.
[1] Silva, Maria de Lourdes Seraphico
Peixoto da. O Ensino Jurídico e suas Deficiências: O Magistério Refratário.
"in" Revista Jurídica, p. 129 ano III, n. II. Curitiba: 1983
[2] Ferraz Jr. Tércio Sampaio.
"in" Introdução ao Estudo do Direito.São Paulo: Atlas, 1996, p. 21
[3] "O direito não é,
portanto, um fenômeno natural, algo posto à disposição do homem pela natureza e
sujeito a leis necessitantes. Ele se situa no mundo da cultura, é uma criação
do homem, uma das muitas formas pelas quais tenta compreender o existente para
sobre ele interagir, conformando-o e direcionando-o no sentido de atendimento
de suas necessidades e realização de suas expectativas." (J.J. Calmon
de Passos. "in" Processo e Democracia. Participação e Processo, p 86)
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