quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Projeto de Código Civil Brasileiro de Antônio Coelho Rodrigues

 


Nota: Este texto foi originalmente escrito por Antônio Coelho Rodrigues, em 1897, com a finalidade de prestar contas de seu projeto de Código Civil e dos fatos que envolveram os debates sobre a codificação civil no Brasil. Como se trata de um texto antigo, a escrita foi atualizada, mantendo-se, tanto quanto possível, o sentido das palavras da época.
Este documento faz parte de publicação patrocinada por Coelho Rodrigues e tem por objetivo organizar subsídios para o exame das obras de Augusto Teixeira de Freitas. Por isso, um reparo sobre uma informação que consta neste texto. A monomania religiosa de Teixeira de Freitas é um fato contemporâneo à sua morte e não do período do esboço. Possivelmente isso tenha sido escrito por "oitiva" (como Coelho Rodrigues se refere aos estudos da obra de Savigny), pois no período em que o Esboço foi contratado com o Governo Imperial, Coelho Rodrigues contava com apenas quinze anos de idade. Há farta documentação dando conta de que as razões da interrupção do trabalho de Teixeira de Freitas foram outras, que serão em breve expostas aqui.
Dentro do possível postarei mais informações sobre isso, mas por ora fica aqui esse importante registro.    
Paulo JB Leal


INTRODUÇAO HISTÓRICA
(Servindo de prologo)

I

1. A Constituição imperial, de 25 de Março de 1824, debalde prometera-nos que “organizar-se-ia quanto antes, um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e equidade”.
O Governo, que ela fundou, deu-nos apenas o Criminal em 16 de Dezembro de 1830, o do Processo Criminal, na 1ª instancia, em 29 de Novembro de 1832, e o Comercial em 25 de Junho de 1850, sem cogitar, que me conste, do Civil, até 1865.

2. Só trinta e um anos depois daquela promessa do legislador constituinte resolveu-se o governo imperial a promover seu cumprimento, contratando, até 15 de Fevereiro daquele ano, a Consolidação das Leis Civis como trabalho preparatório do respectivo Código, com o notável jurisconsulto Augusto Teixeira de Freitas, que devia apresenta-la dentro de três anos, e efetivamente apresentou-a em 1858.
Seu trabalho foi submetido ao exame de uma comissão composta do Visconde de Uruguay, do Conselheiro Nabuco de Araújo e do notável advogado Caetano Alberto Soares, cujo parecer unânime, apresentado a 4 de Dezembro daquele ano, foi aprovado por Aviso de 24 do mesmo mês, o qual não somente aceitou a obra, como louvou o autor.

3. Dois dias antes desse Aviso o Decreto n. 2.318 autorizara a redação de um Projeto do Código Civil, mediante contrato com um jurisconsulto, cuja escolha recaiu, como era justo, no autor do trabalho preparatório e tornou-se definitiva pelo contrato de 10 de Janeiro de 1859, aprovado pelo Decreto n. 2.337 de 11 do mesmo mês.
Pela clausula 3ª desse contrato o projeto devia ser apresentado no 1º de Janeiro de 1862, isto é, dentro de três anos, durante os quais o autor perceberia a mensalidade de 1:200$000, que lhe seria devida integralmente, ainda que o trabalho fosse concluído antes do fim do prazo, e sem prejuízo do prêmio estipulado na cláusula 4ª e fixado em 100:000$ pelo Decreto n. 3.188 de 18 de Novembro de 1863.

4. O Decreto de 20 de Dezembro do mesmo ano criou a comissão revisora, prevista pela clausula 7ª, cujas instruções baixaram com o Decreto n. 3.292 de 23 de Julho de 1864.
Essa comissão, composta dos conselheiros José Carlos de Almeida Arêas, António Joaquim Ribas, Braz Florentino Henriques de Souza, Joaquim Marcelino de Brito, Jeronymo Martiniano Figueira de Melo, Francisco José Furtado e Dr. Caetano Alberto Soares1, constituiu-se, como a de 1858, sob a presidência do Visconde de Uruguay, e limitou seu trabalho ao exame do Título preliminar, sobre o qual os respectivos membros apresentaram em separado seus pareceres, que, com as respostas do autor do Projeto, foram impressos em 1865, na Typographia Nacional; e formam uma brochura de 166 páginas.

6. Em seguida dissolveu-se a comissão, porque o Projeto se achava ainda em esboço e este mesmo incompleto, cuja elaboração se protraiu até 1872, quando o Governo, pelo Aviso de 18 de Novembro, resolveu exonerar o contratante das respectivas obrigações, por supostas divergências, suscitadas entre as duas partes e referidas nos relatórios do Ministério da Justiça de 1869, de José de Alencar, e de 1872, do ilustrado Conselheiro Dr. Duarte de Azevedo, e constantes da proposta da p. 273 à p. 280.
Digo “supostas” por me parecer que a verdadeira causa daquela resolução foi o estado notório de monomania religiosa, em que acabou o famoso jurisconsulto, provavelmente por excesso de trabalho.2
Advogado, quase sem competidores, no seu tempo; solicitado por consultantes de todas as províncias, muitas vezes por colegas e juízes; não podendo contentar-se com a magra subvenção do contrato, nem resignando-se, como eu, a renunciar os proventos da sua banca, cedeu naturalmente ao peso da afanosa profissão, agravado pelos anos, que nunca passam debalde sobre as cabeças, que encaneceram, principalmente quando sua velhice foi precipitada por uma vida toda inteira votada à meditação e ao estudo.
Nem de outro modo se poderia explicar que ele, com a capacidade, que nunca foi posta em dúvida, e com a competência de que dera sobejas provas na Consolidação — talvez mais difícil do que o próprio projeto, — tendo já redigido cerca de 5.000 artigos, desistisse do seu contrato, depois de obter a prorrogação de dez anos, sobre os três, que primitivamente pedira, com a esperança de os não esgotar.3

7. Fosse, porém, qual fosse a causa da rescisão do seu contrato, o ministro, que a resolveu, providenciou desde logo sobre a confecção do nosso Código Civil, e o Decreto n. 6.164 de 11 de Setembro de 1872 aprovou o contrato celebrado entre ele e o Conselheiro e Senador Nabuco de Araújo, para este redigir o Projeto dentro de três anos, a começar do lº de Janeiro de 1873, obrigando-se ele a deixar de advogar, mediante a mensalidade de 1:500$000 e o prêmio de 100:000$, já estipulado para o seu antecessor.
Mas o ilustre sucessor do primeiro contratante cometeu a mesma imprudência que ele, continuando em exercício no Conselho de Estado e no Senado e pretendendo redigir o Projeto nas escassas horas vagas, que lhe deixavam aqueles dois cargos, qualquer dos quais bastaria para esgotar a atividade de outro homem, menos capaz e preparado do que ele.
8. O resultado foi o que não podia deixar de ser, atenta a sua idade e a sua vida afanosa de funcionário múltiplo e chefe de partido nesta terra, onde não há posição mais penosa: morreu, mais de dois anos depois de esgotado o prazo, sem deixar mais do que um copioso material de notas e apontamentos, ainda não coordenados e apenas redigidos o título preliminar com 118 artigos e mais 182 da Parte Geral, isto é, ao todo 300 artigos, pela maior parte calcados sobre o Esboço de Teixeira de Freitas, como se verifica pelas respectivas referências.4

III

9. Falecido o segundo contratante em 19 de Março de 1878, o ilustre finado Senador Dr. Joaquim Felício dos Santos ofereceu-se em junho, para substituí-lo, ao governo e, com ciência e paciência deste, apresentou-lhe, três anos depois, os seus Apontamentos para o Código Civil Brasileiro que, posteriormente sugestionado por amigos mais zelosos do que competentes, crismou com o novo rótulo de Projeto do Código Civil na própria edição de 1881; em que supriu-lhe o índice para não deixar patente a exatidão do antigo título.
O governo, em 4 de Julho de 1881, nomeou, para interpor parecer sobre aquele trabalho, a comissão, que deu o da pag. 229 e foi convertida em permanente a 9 de novembro, para, sob a direção do respectivo presidente, organizar outro projeto definitivo.

10. A história acidentada desta comissão, que ficou dissolvida, de facto, desde a organização do Gabinete de 24 de Maio de 1883 e, de direito, pelo Aviso de 27 de Fevereiro de 1886, expedido pelo Senador Ribeiro da Luz, então Ministro da Justiça do 20 de Agosto, vai exposta da pag. 285 à pag. 238, com a possível imparcialidade; porque, em certames desta ordem, sempre me pareceu estúpido deprimir um contendor o merecimento dos outros. Isto só pôde ter como defeito diminuir a importância da vitória daquele que a conseguir, porque cada um deles pôde ser vencido e, vencido por vencido, é melhor sê-lo por uma notabilidade do que por um anônimo.
É natural que muitas vezes me tenha deixado dominar pelo desejo de elevar-me à posição dos mais altos; mas, mercê de Deus, nunca senti o prazer satânico de puxar pelos pés a quem se eleva pelo próprio merecimento.

11. Três anos e quatro meses haviam decorrido, depois que fora oficialmente dissolvida a comissão de 9 de Novembro, sem que o Governo mostrasse empenho de promover o projeto do Código Civil, quando, no 1º de julho de 1889, o Gabinete de 6 de Junho, presidido pelo ilustrado Sr. Visconde de Ouro-Preto, a reconstituiu na forma referida à pag. 238 e seguintes.
Esta comissão, que trabalhava com louvável assiduidade, sob a presidência do Imperador, até às vésperas da proclamação da República, aproveitou bem o seu tempo e pena é que o receio de avolumar de mais este trabalho me impeça de introduzir nele o resumo do seu, com a devida vênia dos companheiros, que colaboraram nela sem remuneração do nosso Governo, cujo espírito de economia só se tem feito sentir, até hoje, em relação ao Código Civil.

IV

12. O Governo Provisório de 1889, sobre o meu pedido de dispensa daquela comissão, dirigido ao respectivo ministro, a 18 de Novembro, resolveu dissolve-la por Aviso de 20, com o pensamento declarado de deixar o Código Civil aos poderes locais, como fizeram os Estados Unidos da América do Norte e a Suíça.
Lendo aquele Aviso, procurei o seu ilustrado autor, a quem conhecia apenas de vista e de quem fiquei sendo amigo desde então, para ponderar-lhe os perigos da legislação múltipla, sobretudo nas relações de família, reconhecidos por todos os grandes estadistas e jurisconsultos daquelas duas Repúblicas, e particularmente da segunda, onde, há um século, são constantes e ininterruptos os trabalhos preparatórios da unificação do direito, apesar da diversidade das línguas, dos costumes e das religiões da sua população, naturalmente porque, como bem diz um poeta francês:
Le monde, en s'éclairant, s'élève à l´unitê.5 

13. O ministro nada resolveu na ocasião, que me constasse; mas posteriormente incumbiu-me do projeto da lei do casamento civil, e mais tarde do projeto do Código Civil, como referi à pag. 240.
No contrato, que fizemos para este segundo trabalho, ele deixou ao meu critério todas as outras cláusulas, exceto o prazo, que pretendia fosse de um ano e que a muito custo elevei a três, com protesto de encurta-lo quanto pudesse.
Em seguida concordamos que o contrato se fizesse em julho, para escusar-me de ser senador pelo Piaui, e que o prazo só começasse a correr de setembro, para não agravar os prejuízos da liquidação precipitada do meu escritório6 e dar-me tempo a pôr em ordem meus negócios; de modo a permitir minha partida imediata para a Europa, onde eu havia resolvido fazer o trabalho, afim de não ocupar-me de outra coisa durante ele.

14. Minha viagem, porém, foi retardada, a pedido dos amigos e comprovincianos, que a meu pedido haviam formado, dos bons elementos dos três antigos partidos históricos, o “Nacional Republicanos” em que todos se fundiram; de modo que, só quatro dias depois de votada a Constituição do Estado (a primeira que se promulgou) pude, a 31 de Maio, embarcar para a Europa.

15. A esse tempo, e após nove meses do prazo do contrato, eu apenas tinha redigido e feito imprimir trezentos e poucos artigos do Projeto Preliminar e da Parte Geral os quais foram, pela maior parte, substituídos ou alterados, em Genebra, onde recomecei, em 2 de Agosto, o trabalho, que levei ao termo um ano e vinte e seis dias depois, em 28 de Agosto de 1892; posto que só concluísse a sua revisão em 11 de Janeiro de 1893. Isto, porém, não se fez com a rapidez, com que escrevo estas linhas, nem com a facilidade, com que o leitor as percorre.

16. Na revisão do Projeto Preliminar alterei ou substitui quase todos os artigos já impressos, e a Parte Geral foi quase toda refeita duas vezes, a última das quais teve por fim introduzir lhe a matéria da prescrição, que não convinha cindir, nem podia caber inteira em nenhum dos livros da Parte Especial.
Nesta não me deu menos trabalho o livro “Da Posse e da Propriedade e dos outros direitos reais”, sobretudo na parte relativa à primeira matéria, na qual rompi com os romanismos escusados e com a teoria de Savigny, em geral ignorada ou mal compreendida, não só por aqueles que dela falam de oitiva, como por muitos que se metem a ensina-la sem consciência da sua dificuldade.
O livro das Sucessões também me deu muito trabalho, principalmente para evitar a transição brusca da herança necessária à liberdade de testar.

17. Felizmente o material, que eu tinha reunido, desde 1881, sobre o “Direito da Família” e o fundo comum de todos os códigos modernos, sobre as “Obrigações” haurido do Direito Romano, que nesta matéria, altamente abstrata, sofreu menos influência da respectiva Constituição política, do que nas outras, me permitiram compensar, até certo ponto, o excesso do tempo empregado nos demais livros.
Sem embargo disso, não copiei códigos estrangeiros, como afirmaram diversas vezes os jurisconsultos do Governo: nem o Italiano sobre o mandato, que ele considera contrato “sui generis” ao passo que eu o considero locação de serviços, quando retribuído, e doação, quando gratuito; nem o Federal Suíço, sobre o direito autoral, que ele considera propriedade e que eu considero privilégio, nem o de Zurich, sobre a propriedade e as servidões, como se verifica pela simples inspeção dos respectivos índices.

18. Além daquelas dificuldades intrínsecas, tive contratempos pessoais, tão repetidos no princípio, que quase desanimei de concluir o projeto, dentro do prazo do contrato.
Com efeito, logo no fim de agosto de 1891, sobreveio-me um incômodo, que me inibia de estar sentado e, por consequência, de escrever, si eu não tomasse o expediente de comprar uma secretária, que me permitia fazê-lo de pé, e graças à qual a interrupção do meu trabalho não excedeu de três dias.
Do fim de setembro ao de dezembro, o frio do inverno, obrigando-me a fazer maior consumo do café e, por consequência, do charuto, de um lado, e do outro os dias de oito e seis horas, nem sempre suficientemente claros, obrigando-me a um uso constante da luz do gás, debilitaram-me de tal modo a vista que a graduação dos meus óculos baixou três números.
Isto fez o meu médico7 propor-me o dilema de deixar o trabalho ou o charuto, e valeu-me, desde esse mesmo dia, libertar-me daquele vício que tinha, havia mais de trinta anos.
Em Janeiro de 1892 outro incômodo no polegar da mão direita, impedindo-me de escrever, obrigou-me a comprar uma maquina Remington, de que aprendi a servir-me, mas não pude aproveitar-me, porque ela não se prestava às reiteradas emendas e substituições que só exige o articulado de um projeto de lei.
Em março uma coriza crônica, provocada pelo rapé, que eu substituíra ao charuto, e de que usava moderadamente antes, mas abusara depois, que deixei de fumar, fez-me renunciar até hoje a mais aquele vício.
Em fins de maio o meu médico receitou, para curar-me de outro incômodo, uma estação balnearia em Uriage, com o preceito de não levar comigo livros, e nem mesmo papel para cartas; prescrição a que me submeti sem resistência, não só porque me sentia realmente fatigado, como porque a esse tempo já tinha mais de quatro quintos de serviço feito, e desejava muito visitar as Faculdades de Direito de Grenoble e Lyon, tanto para conhecê-las, quanto para consultar, sobre a classificação das matérias civis, a Mr. Tartari, reitor da primeira, professor do Código Napoleão, e romanista notável, que acabava de publicar uma importante obra sobre o Direito Romano.

19. De volta de Uriage, em fins de junho, conclui o livro do Direito das Obrigações, que faltava semente o último título, e redigi o das Sucessões; Porque o do Direito da Família foi o primeiro que articulei, da Parte Especial.
Deste modo, em 28 de agosto, pude tomar férias até 9 de setembro, quando comecei a primeira revisão do projeto, com a qual me ocupei até 6 de novembro. Foi nela que o Direito das obrigações passou a ocupar o primeiro lugar e o Direito da Família o terceiro daquela parte.
Foi também durante ela que resolvi fazer segunda revisão, para reunir toda a matéria da Prescrição no livro da Parte Geral e acrescentar ao Direito das coisas o capítulo sobre a hipoteca das estradas de ferro e ao Direito da Família a matéria do conselho de família, dos produtores, assim como a do serviço doméstico, antes regulado conjuntamente com as outras locações de serviço.
Esta segunda revisão, calculada para ser concluída antes do fim de 1892, foi protraída até 11 de janeiro de 1893, por um incômodo sério, sobrevindo à pessoa de minha família, em 30 de Novembro.

20. Isto feito, fui pela primeira vez a um teatro na Europa, considerei-me em férias e desta vez por largo tempo; pois o meu prazo ia até Setembro, eu podia prorrogá-lo até Março de 1894, e estava resolvido a usar deste direito, até ver se, nesse ínterim, saia do ministério o Sr. Fernando Lobo, a quem não desejava apresentar o meu projeto, porque tinha sobejos motivos para contar com a sua má vontade contra mim e me arreceava muito da soberana indiferença, para não dizer desprezo, que o chefe do Governo votava ao elemento civil.8
Com efeito, eu sabia por triste experiência que nesta terra a política se mete em tudo, e que a mair parte das suas questões se resolve por motivos pessoais, ou geográficos. O Sr. Fernando Lobo era, não só conterrâneo, como amigo íntimo do autor do projeto de 1881, e irmão de um dos autores do projeto do Senado n. 45 de 1891, que mandava adotar aquele, como código civil, com flagrante violação do meu contrato.9
Além disso, eu atribuía à S. Ex. exclusão deste ato do governo Provisório da coleção oficial de 1890, e tinha recebido dele, em Genebra, um telegrama, de 8 de Abril de 1892, proibindo-me de ser candidato à cadeira, que então havia vaga, de senador federal pelo Piaui, e que, apesar disso, me foi dada pelo seu eleitorado.

21. Nestas condições me preparava para uma longa excursão pela Itália, quando, em 16 de janeiro, o jornal Le Temps, de Paris, cujo serviço telegráfico é excelente, noticiou a demissão do Ministro da Justiça do Brasil, e, ansioso, como estava, de desempenhar-me do meu compromisso e de voltar a esta terra, de onde saíra pela primeira vez, oficiei no mesmo dia ao Marechal Floriano, participando a conclusão do meu trabalho, e a sua próxima apresentação e pedindo-lhe que não demorasse a nomeação da comissão revisora, nem ouvisse, sobre ela, aos nossos homens de partido.
E note-se que, independente daquela notícia falsa, eu lhe teria feito a participação direta, por me parecer que as atribuições, conferidas pelo meu contrato ao Ministro da Justiça, depois da Constituição de 24 de Fevereiro, só podiam competir ao próprio Chefe do Governo.

22. Deste modo renunciei a mais de oito meses do meu prazo, além dos seis da prorrogação autorizada, durante a qual teria encontrado outro ministro, e daí nasceram todas as contrariedades do meu projeto, cuja via dolorosa começou do próprio ato da sua apresentação, e ainda parece longe do seu termo.

V

23. Na mesma data, em que participei ao Marechal Floriano a conclusão do meu trabalho, remeti pelo registro do Correio o exemplar da primeira revisão ao meu correspondente aqui, e entreguei lá a um amigo o projeto primitivo para o guardar, até segunda ordem, ficando apenas com o terceiro exemplar, que trouxe comigo para aqui, onde cheguei a 22 de fevereiro de 1893.
No mesmo dia procurei, duas vezes, o Chefe do Governo para apresentar-lhe mas, não me sendo possível falar-lhe, voltei no dia seguinte, sempre debalde, outras duas, da última das quais deixei-lhe um pedido de dia e hora para uma conferência, em carta, que, mais tarde, soube por um amigo comum, não lhe chegou às mãos; naturalmente porque 08 secretários, que lhe abriam a correspondência de letra suspeita ou desconhecida, não julgaram o assunto digno de consideração porque entenderam que com um anônimo como eu não valia a pena de incomodar-se o Marechal, ou, finalmente, porque o velho lema: Cedant arma togae já estava positivamente substituído pelo outro: Silent inter arma leges.

24. Como quer que fosse, só depois de quatro tentativas frustradas para ver o Chefe quase invisível do Governo, procurei, no segundo dia da minha estada aqui, o Ministro, que se achava na Secretaria, onde o encontrei confabulando com um ilustre inventor dos balões dirigíveis, e tão absorvido pelas cousas do ar, que nem ao menos quis ver o invólucro, que eu levava e depusera sobre uma cadeira com os meus chapéus os limitando-se a mandar apresenta-lo, com a primeira carta, inserta à pag. 124, ao Diretor da Typographia Nacional, que lá não estava naquele dia e só a 24 ou 25 pude encontrar.
Esse também, em vez de receber o manuscrito, remeteu-me para o diretor das oficinas, que somente o recebeu no dia 27, como se vê da segunda carta da pag. cit., e mais tarde restituiu-me a Parte Especial, para guardar e ir entregando à proporção que carecesse da continuação do autografo, cuja impressão pretendia ele fazer em poucos dias, e somente não fez, porque as encomendas urgentes do Governo preteriam as outras, e aquela não o era, creio que, de propósito, para me contrariar.
26. Fez-se mais: anulou-se a encomenda de 23 de fevereiro, que fora lançada à conta do Ministério da Justiça, sob o n. 719, substituindo-a por outra de 13 de março, que foi a continuação daquela, sob o n. 873, feita sem ciência minha, como prova a certidão da pag. 269.
Deste modo a Secretaria conseguiu protrair a impressão até 28 daquele mês, quando obtive a correção das formas ainda não brochadas e fui com elas procurar, ainda uma vez debalde, o Chefe do Governo, para reclamar contra a morosidade daquele serviço e da nomeação da comissão, que só se constituiu a 31 de maio, isto é, depois do prazo, dentro do qual devia ela dar seu parecer, nos termos do art. 8º do contrato da pag. 44.

26. Disse que julgava proposital essa demora, porque o autor do telegrama de 8 de abril de 1892 não podia ser indiferente ao reconhecimento da minha eleição e, como este só podia ter lugar em maio, era conveniente simular que, a esse tempo, eu ainda não havia apresentado o Projeto, e dai arranjar um sofisma, encastoado no art. 3º do contrato, contra a minha elegibilidade.
Para isso obteve que a Mensagem da abertura do Congresso omitisse qualquer referência à apresentação do meu trabalho, e, apesar de me ter comunicado em ofício de 11 de abril o recebimento, a 8, dos 650 exemplares, que encomendara à Typographia Nacional, e de tê-los mandado distribuir pelos membros das duas casas do Congresso, encerrou o seu Relatório anual a 15 daquele mês, referindo apenas que, em 16 de janeiro, eu havia participado a conclusão do Projeto.
Este plano quase conseguiu o desejado efeito na ocasião de discutir-se o parecer unânime que me reconhecia, o Sr. Conselheiro Ruy Barboza pediu informações a respeito, e o finado Aristides Lobo, relator da comissão, parente próximo, amigo íntimo e colaborador constante do Ministro, opinou, sem maior exame, que o parecer voltasse à mesma para ser reconsiderado; de modo que, se não fossem os embargos, articulados e provados em continente pelo integérrimo ex-Senador Ubaldino do Amaral, é muito provável que a minha eleição tivesse sido anulada.

27. E não parou aí a boa vontade do Ministro. No meu contrato eu havia, sobretudo, procurado garantir duas coisas: não ser julgado sem ser ouvido e limitar, com o prazo da revisão, o da solução do Governo, fixando em três meses o primeiro, o segundo em quatro, e mandando contar ambos da data da apresentação do Projeto (arts. 1°, 6º e 10 do contrato da pag. 44).
Pois bem, a apresentação teve lugar a 23 de fevereiro, a comissão reuniu-se pela primeira vez em 31 de maio e, por consequência, depois do prazo, em que devia ter funcionado, e a 27 de julho — cinco meses e quatro dias depois de apresentado o Projeto — o Ministro comunicava-me que o Governo resolvera rejeitá-lo, avistado parecer da mesma comissão.
Esse parecer, que provavelmente ainda não existia, só me foi remetido a 2 de Agosto, entrelinhado, nas colunas de honra do Diário Oficial, que nunca publicou minha defesa, apesar de ter sido apresentada, já impressa no Jornal do Comércio, de 16 do mesmo mês e neste mesmo dia.

28. Essa defesa que, nos termos do contrato, não devia ser sujeita a novo exame, foi remetida pelo Ministro aos seus Jurisconsultos, doze dias depois de recebida, por um despacho datado de 28 de agosto, mas publicado a 13 de setembro, isto é, seis dias depois da minha partida para a Europa.
Em minha ausência publicaram eles no Diário Oficial de 18 de novembro, com data de 17 de outubro, a sua réplica, em que não só duplicaram as descomposturas ao Projeto, como denunciaram o autor de mentecapto, naturalmente porque quem traz óculos coloridos vê o mundo da cor dos vidros.
E tão satisfeito ficou o Ministro com a encomenda, que mandou dar-lhes vinte e quatro contos, isto é, quase um quarto do prêmio, que com tais expedientes pretendeu tirar a quem não recuou diante de nenhum sacrifício, para desempenhar-se nobremente daquele desgraçado compromisso, que em tão má hora tomou.

29. Esta suposta economia, porém, não chegou para, dentro dos dois meses seguintes, conceder-se uma indenização, igual ao meu prêmio, pela morte de um marinheiro italiano, ocorrida em ato de legitima defesa do nosso Governo, que pagou-a, ao respectivo Cônsul, sem forma nem figura de juízo, e até sem a compostura e a decência indispensáveis nos negócios internacionais: o que me doeu mais do que a rejeição do Projeto, pelos dignos representantes da ciência oficial.

30. Com efeito, posso repetir como o finado Teixeira de Freitas — “Nas composições literárias só prejudicam arguições definidas, a que não responderam, ou mal responderam seus autores.”10
Se o leitor é competente na matéria, bastar-lhe-á ver os dois trabalhos da comissão, para aquilatar da incapacidade dos meus censores, si, porém, não é especialista, medite na acusação e na defesa e louvar-me-ei no seu juízo, desde que seja desinteressado, porque estive convencido de que, sobre esse negócio, a posteridade há de pronunciar-se, não contra a minha competência, mas contra a probidade científica dos críticos oficiais, e contra a seriedade do nosso Governo.
É por isso que suprimi os nomes dos membros da comissão, e remeti para o epílogo alguns documentos, que foram primitivamente destinados a um pleito judicial, mas não devem ser ingloriamente sepultados nos recessos de um cartório.
Esse epílogo contem a história do meu prêmio, a qual não ficava bem, intercalada na do Projeto do Código Civil, que deve interessar muito mais aos leitores.

VI

31. As críticas mais serias, que tem sofrido o meu trabalho, foram as da comissão especial do Senado, no parecer que vai adiante à pag. 180, e que foi longamente sustentado pelo seu competente relator, nos ilustrados discursos da pag. 186 à pag. 219.
Aí as censuras vem apoiadas em autoridades e argumentos de pessoas a que me não era permitido deixar de responder, posto que fossem relativamente pouco numerosas, e não concluíssem pela rejeição do trabalho, mas antes pela sua adoção definitiva, depois de uma revisão sobre os pontos arguidos.
Aí a luta foi difícil, mas os contendores não faziam obra de encomenda, e eram de estatura capaz de fazer honra ao vencido.
Entretanto, acredito que, si todos os seus argumentos não foram rebatidos com vantagem, nenhum ficou sem resposta plausível e bastante, para provar que nada admiti sem exame, nem escrevi sem ter maduramente refletido, sobre todas as matérias do meu longo articulado.

Destarte, se não posso repetir, como Corregio:
Ed io anche son pittore,
posso, ao menos, dizer, como Camões:
Não me falta na vida honesto estudo...

Para apoiar minha defesa ofereço os discursos da pag. 146 à pag. 186 e o resumo da pag. 219.
O Senado, por sua vez, pareceu dar-me razão, aprovando o projeto n. 35, do ano passado, reproduzido à pag. 223 e pendente do voto da Câmara dos Deputados, que, Deus queira, possa ocupar-se este ano das graves questões politicas, financeiras e até sociais, que lhe incumbe resolver.

32. Entretanto ainda uma surpresa desagradável, a propósito do nosso Código Civil, me estava reservada, este ano, na Mensagem, que o Presidente da República dirigiu ao Congresso, na sessão inicial dos seus trabalhos e que, entre as numerosas matérias, cuja solução pediu ao legislador, inclusive um Código Militar, nem de leve se referiu ao Civil, sendo imitado nisto pelo Ministro da Justiça, no seu relatório anual.
Destarte SS. EExs. fizeram agora o mesmo que os seus antecessores de 1893, e que eu expliquei então pela má vontade, que me tinha um dos dois, e pelo desprezo, até certo ponto justificado, que o outro parecia votar ao elemento civil, e a tudo quanto se lhe referia.11
Hoje, porém, sou forçado a reconhecer que a minha suspeita, de quatro anos atrás, pode ter sido injusta, porque o facto acaba de reproduzir-se por pessoas diferentes, que não tiveram as mesmas razões, então atribuídas aos outros para os imitar, como fizeram.

33. Com efeito, o Dr. Prudente de Moraes, bem que tenha sido oficial do meu ofício, não pôde ter de mim, que me conste, o mais leve motivo de queixa, e o Dr. A. Cavalcanti, posto que estudasse em uma Faculdade estrangeira, sabe mais direito do que muitos titulados pelas nossas, e advoga há bastante tempo, para ter sentido, como todos os colegas do foro, a necessidade urgente de um Código Civil brasileiro.
Só posso, pois, explicar o silêncio de SS. Exa. por uma de duas razões: ou porque lhes pareça imprestável o meu Projeto, ou porque sejam, em princípio, contrários à codificação.
A primeira razão não pode satisfazer, porque, si o meu não presta, nada impede que se contrate outro, nem que se aprove, ainda mesmo temporariamente, a Consolidação de Teixeira de Freitas, ou o trabalho do Conselheiro Araripe, ou que se complete, coordene e corrija o projeto Felício dos Santos, para o que ofereço copiosa colaboração nas Observações críticas, da pag. 240 e no parecer da comissão de 1881, inserto à pag. 229.12
Isto é tanto menos contestável, pelo atual Governo, quando ele acaba de contratar o Projeto do Código do Processo Federal, com um jurisconsulto muito capaz de fazer outro do Civil, sem o qual aquele não tem razão de ser, nem pôde ser bem feito; porque deve concordar com este como um adjetivo com o seu substantivo.
E, pois, por exclusão de partes, só me resta a considerar a segunda razão: o Presidente da República e o Ministro da Justiça são, por sistema, inimigos da codificação, como a escola histórica, de cujo chefe na Alemanha sou, aliás, não só admirador, como discípulo, em muita cousa.
VII
34. A essa escola Jurídica filia-se naturalmente a conservadora em política, e ao homem, que, como eu, já entrou pela tarde da vida, com sete lustros de estudo do direito, numerosa família e alguma cousa que perder, ganha á força de trabalho e economia, não pôde deixar de ser conservador; ainda que traga, na sua alma, um fundo de socialismo cristão, que o impila constantemente para essa fronteira comum, em que se encontram o liberal moderado e o conservador progressista.
Apesar disso, porém, ou antes por isso mesmo, nunca pude compreender os inimigos das leis fixas, imitadoras das naturais, coordenadas e accessíveis a quantos interessa o seu conhecimento, e sempre me pareceu que a melhor legislação, para um povo civilizado, é a que deixa menos arbítrio as suas autoridades.

35. A primeira razão de ser da sociedade política é a garantia da liberdade; sem esta, aquela seria pior que o deserto, e a vida do lobo selvagem de La Fontaine muito preferível, como ideal do homem, à do cão doméstico, cevado.
Sociedade, lei e poder são noções, que se completam ou antes três faces diversas da mesma entidade jurídica. A liberdade é a regra; o poder a exceção e, como esta não se presume, a lei positiva é a medida rigorosa do segundo, e o limite social da primeira; de modo que onde a lei acaba, acaba o poder, com ela, ou começa a tirania, que é poder sem lei.
Ora, a tirania me repugna tanto que, na história de todos os tiranos, o que eu mais admiro são os seus admiradores, a Turba Remi de que falava Juvenal, ou a raça eterna dos Instrumenta regni, que “ora de sê-lo se gloria, ora de não poder sê-lo se lamenta.”
Quando Aristóteles fala, na sua Política, das raças formadas para escravos, pela própria natureza, confunde-as, provavelmente, com essas turbas aviltadas, que perderam, com o amor da liberdade, até o pejo de a ter perdido.

36. Se estivéssemos num país de limites circunscritos, de população densa e formada por pessoas conhecidas entre si, de hábitos tradicionais e de costumes uniformes, comprimida por uma concorrência omnimoda, na luta pela vida, com tradições assentadas e hereditárias, eu talvez concedesse que a codificação fosse suprida pela consolidação do direito vigente, ou, ao menos, adiada até que uma crise na evolução nacional reclamasse novos moldes, para novas relações jurídicas, e para as suas necessidades consequentes.
Por outro lado também compreendo que, em períodos normais, e dada uma legislação racional e bastante, se pudesse dispensar a codificação; mas nos períodos de organização ou de decadência a autoridade precisa de força, que não pode ter sem leis claras e precisas, em todos os ramos; porque poder sem lei não é autoridade, é força, e esta sem aquela é incapaz de conservar, e muito mais de construir.
Ora, ninguém dirá, em consciência, que estejamos atravessando um período normal na vida pública, nem na particular; os abalos da transição operada em 1888 e 1889, do antigo regime para o novo, ainda se fazem sentir e, nas relações de direito, sobretudo, ainda oscilamos entre o caos e a ordem.
Há quase um quarto de século, uma lei de 23 de Outubro de 1875 conferiu debalde ao Supremo Tribunal do Império, para fixar a jurisprudência, a faculdade de tomar assentos sobre as questões controvertidas. Seu sucessor na República também não tem primado pela correção e pela uniformidade das suas decisões; pelo contrário, estas tem sido às vezes contraditórias, umas com as outras, no correr de um mesmo ano. Ainda há pouco decidiu ele que as usurpações do Governo contra funcionários vitalícios, apesar de garantidos pela Constituição, legitimam-se, como certas servidões prediais, pelo lapso de um ano, provavelmente porque entende que as garantias constitucionais devem recuar ante qualquer disposição ordinária, como as do art. 13, § 5º in fine e 83 da Lei n. 221, de 20 de Novembro de 1894.13

37. Além disso, num país de dezesseis milhões de habitantes, para mais de oito milhões de quilômetros quadrados, com quatro mil milhas de costa, onde às vezes o cidadão não conhece a própria província, onde nasceu ou vive, e custa-lhe multo mais conhecê-la do que viajar a Europa inteira, onde o menor Estado é maior do que a Suíça sem ter um décimo da população desta, a unidade e a facilidade do conhecimento do direito privado deve ser uma das melhores garantias da União, porque o hábito é uma segunda natureza, a legislação civil é a que mais influi nos costumes do povo, e a identidade deles não só facilita a harmonia dos particulares e a ordem pública, mas também alimenta o sentimento patriótico da unidade nacional, que tanto nos vai faltando.
Com efeito, enquanto o inglês expande-se ao pensamento de que a sua “Viúva de Windsor reina sobre a metade da terra” “The Widow of Windsor who owns half creation” os brasileiros parecem roubados pela superioridade da província vizinha às suas e cevam o seu patriotismo procurando tirar o mais que podem da União para os seus Estados, e subtrair quanto seja possível às contribuições destes aquela.
Em alguns deles parece que o amor à terra natal não transpõe os umbrais do lar, ou para, quando muito, na fronteira do município; de modo que nada nos deve preocupar tanto quanto a unidade desta pátria, que nossos pais deixaram-nos tão grande que excede as forças do coração de muitos dos seus filhos, como se nele o patriotismo tomasse demasiado espaço ou pudesse diminuir a capacidade do estômago.
A disseminação dos habitantes deste país privilegiado, onde tudo é grande e só o homem é pequeno; a mistura das suas raças diversas, a diversidade da sua educação e a massa enorme de mais de 80% de analfabetos reclamam, com urgência, mais um traço de união na vida pública e um ponto de apoio nas relações particulares; e para uma e outra coisa não vejo meio melhor nem mais eficaz do que a unificação do direito; e sobretudo a do direito privado.14

VIII

38. Se a Constituição de 1824, outorgada por um monarca hereditário, já considerava urgente o Código Civil, incluindo nele o Comercial; se há quarenta e dois anos o Governo do Império se ocupava dele, com pequenos intervalos, só um preconceito inveterado contra a codificação das leis, ou uma supina indiferença pelas necessidades públicas pode propor o adiamento da satisfação daquela, máxime sob o novo regime, radicalmente diverso do anterior, e ainda mais pródigo de Leis, Decretos, Avisos, Instruções e Regulamentos do que ele; de modo que já se pôde aplicar à nossa República ainda infante, o que Cícero dizia da sua já moribunda Plurimas leges corruptissima Respublica!
Ora, as leis são feitas para serem executadas, e não podem ser executadas sem serem conhecidas, nem conhecidas antes de serem publicadas, de modo a se tornarem acessíveis, não só às autoridades, que as devem fazer cumprir, como aos particulares obrigados a lhes prestar obediência.
E, se isto é verdade, a respeito dos outros ramos da legislação, ainda o é mais, a respeito do civil, que deve regular quase todas as relações privadas dos habitantes do país, desde o nascimento até a morte, e desde a constituição da família até a distribuição dos respectivos bens, quando ela se dissolve.
Mas ninguém dirá em consciência, que a publicação das nossas leis, feita em globo quase sempre tarde e a más horas, ou a retalho numa folha, onde quase somente saem os anúncios, cujo segredo interessa a quem é obrigado a publica-los, e cuja missão principal é hoje, ou parece ser, desmoralizar o Congresso, custando ao Tesouro centos de contos, para transmitir os debates das duas Câmaras a quinhentos assinantes15, ninguém dirá, repito, que baste para torná-las accessíveis ao nosso publico.

39. Quanto a mim, confesso, a grande cópia das nossas leis recentes, sem ordem, nem sistema, me não permite conhecer bem a todas elas, apesar de fazer do seu estudo minha profissão habitual, e, o que me acontece a mim deve acontecer, si não a todos os colegas, ao menos á grande massa dos nossos concidadãos.
Além disso a frase tabelioa: “Revogam-se as disposições em contrário” transmitida pelo Império à República, como remate obrigado de todas as leis modernas, sem remissão nem revogação explicita, envolve às vezes alterações tão profundas quanto numerosas, que não raro escapam aos próprios profissionais, - quanto mais á massa geral do nosso povo, para a qual deviam ser redigidas todas as leis positivas e, especialmente, as civis!
E, ai atendermos a que a nossa legislação civil continua baseada nas Ordenações de 1603, mandadas compilar por S. M. Católica para os seus súditos do Reino Fidelíssimo, escritas no estilo bysantino das Novelas dos Imperadores do Oriente, precedidas e seguidas de leis extravagantes, em todos os sentidos, algumas de mais de três séculos, e destinadas primitivamente a um Reino Absoluto, enxertadas depois no Império constitucional, e sobrepostas ultimamente ao Regime Republicano, deve parecer incrível que ainda há alguém capaz de considerar tolerável este estado de coisas.

40. Acresce que aquelas Ordenações não somente são remissivas ao “mare magnum” do Direito Canônico (apenas abolido implicitamente pelo Decreto n. 119-A de 7 de Janeiro de 1890) como, sobretudo, ao Romano que ainda continua subsidiário do nosso, tanto nas Institutas com os seus quatro livros de 98 títulos16 e 706 parágrafos, quanto no Digesto com as suas 7 partes e os seus 50 livros, compostos de 443 títulos; quanto no Código com os seus 12 livros e 765 títulos e nas 168 Novelas, geralmente subdivididas em capítulos, de numeração seguida, excetuadas a 8º que compreende dois títulos17.
Nestas condições a falta de um Código Civil brasileiro e a conservação das Ordenações da antiga metrópole, onde, há mais de trinta anos, só se reimprimem como gênero de exportação para esta colônia soi-distante emancipada e republicana, é mais do que um atestado irrefragável da incapacidade dos nossos legisladores e da indiferença dos nossos governos transactos pelo bem-estar deste pobre povo, que os tem suportado e mantido; é uma vergonha nacional que já tem pesado demais sobre três gerações de brasileiros, contadas à razão de quatro para cada século.

41. Por outro lado há dois períodos críticos na vida dos povos, em que a codificação não é somente uma medida geral de interesse comum; mas antes um remédio heroico para a constituição ou para a conservação da sua nacionalidade.
Esses dois períodos são o da organização e o da dissolução da sociedade politica e, como exemplo, se podem citar para o primeiro caso as Leis das XII Taboas, em Roma, e as Capitulares de Carlos Magno, em França, e para o segundo caso a compilação de Justiniano e os códigos de Napoleão naqueles mesmos países.
Na atualidade o Brasil oferece, ao mesmo tempo, sintomas de crescimento desordenado e de dissolução que cumpre remover por todos os modos, quanto antes e, contra uns e outros, não vejo melhor recurso do que uma legislação positiva, certa e precisa, servida por autoridades conscientes dos seus deveres e resolvidas a cumpri-los até o fim; porque a maior parte das revoluções políticas não tem sido obra dos povos rebeldes, mas dos governos fracos, e o pior despotismo é o da covardia, companheira quase constante dos governos, que vivem fora da lei.

42. O único argumento sério, que se costuma opor às codificações, é a chamada “Cristalisação do direito” mas esse ficou prevenido nas “disposições Adicionais Transitórias” que podem e talvez devam ser modificadas; mas nunca suprimidas de um Código moderno, destinado a um povo civilizado.
De tudo isso concluo que só poderiam negar a necessidade urgente de um Código Civil, para este país tão profundamente minado pela paranoia mental, que é sempre a precursora da material, um legislador inepto, um governo incapaz, uma magistratura inconsciente, um foro ignorante ou chicanista, si os tivéssemos, e ainda assim, o país inteiro continuaria a reclamá-lo como o faminto pede pão e o sequioso água, para poder viver e crescer.

43. Pela minha parte fiz o que pude, e ainda não voltei as costas aos adversários do meu trabalho, por mais consideráveis e valentes que fossem. Só me faltou mendigar, suplicar ou mesmo pedir proteção e votos para ele, não só por me parecer que não precisava disso, como porque, ainda quando precise, não tenho gosto nem jeito para esses expedientes. Estou resignado às consequências dessa atitude e satisfeito, apesar de tudo por sair deste malfadado negócio, após sete anos de trabalhos e contrariedades tão inteiro, como saí da política, após trinta anos de lutas não me falta em que empregar melhor e mais utilmente o resto de vida e atividade, que Deus me der e que já não pôde ser grande coisa
Entretanto, qualquer que seja a sorte do meu Projeto, uma consolação me ficou de ter-me incumbido dele: daqui por diante outros brasileiros poderão fazer melhor mas, até agora, ainda nenhum fez tanto.
O leitor imparcial encontrará a prova disto nas peças oficiais que lhe ofereço em seguida.

Notas:

1 O 1º, que foi depois Visconde de Ourem e Diplomata, era então um alto funcionário do Tesouro; o 2º e o 3º eram lentes das Faculdades de Direito de S. Paulo e do Recife; o 4º foi presidente do Supremo Tribunal de Justiça; o 5º foi membro do mesmo e Senador pelo Ceará; o 6º, que era piauiense, aposentou-se como juiz de Direito e morreu Senador pelo Maranhão, depois de ter sido Ministro e presidente do Conselho de 31 de Agosto de 1864; o 7º era uma notabilidade do nosso foro e o presidente, antigo Ministro e Diplomata, era um Conselheiro de Estado digno de figurar como primus inter pares nessa comissão.

2 O motivo público e oficial foi a recusa da proposta, que ele dirigido ao governo, em 20 de Setembro de 1867, e que este não aceitou apesar do parecer favorável do Conselho de Estado à sua proposta, que o leitor encontrará à pag. 273, alude o autor, na 5º nota ao parecer da comissão de 1858, anexo à 3ª edição da Consolidação das Leis Civis.

3 O artigo preliminar do seu Código Geral, publicado muito depois, era o seguinte: “Código Civil e Criminal é o da representação de todos os direitos sem o Epílogo da morte”... “Os meios são o nihilismo e o positivismo deste Código”.

O código geral devia ter 66 artigos, porque é o número médio, entre o 6 e o 666, — número da Besta do Apocalipse (c. 13, v. 18) que ele explicou, como Bossuet, sem todavia citá-lo. Além disso, as notas 15-19 sobre o Gog e o M gog, o Espírito e o Pheuma, e a n. 65 sobre as Nossas Senhoras do Rosário e da Conceição, assim como quase tudo que se contém nessa obra, são uma prova irrecusável da monomania do autor, e destoam completamente do plano da referida proposta.

4 O leitor encontrará os detalhes dessa tentativa frustrada à pág. 265 e seguintes.

5 Rotsel— Man. du Droit det Oblig. Introduct. pr.

6 Isto prova que o meu contrato não foi economicamente um bom negócio. Os cargos e a comissão, que eu então exercia. Davam-me uma renda fixa mensal superior a um conto de réis, sem prejuízo do escritório.

7 O Dr. Cheneyière, uma notabilidade de Genebra.

8 Desse desprezo falavam-me todas as notícias recebidas daqui a mais do que elas me atestava os decretos sobre os Estrangeiros e a Imprensa os. 1565 e 1566 de 13 de Outubro de 1893.

9 Veja-se a pag. 127.

10 Nota 1º in fine à 3ª edição da Consolidação, sobre o parecer da comissão de 1858, pag. XIX.

11 Digo — até certo ponto justificado — porque, depois de Syla, nunca houve chefe de República que tanto desprezasse a vida e a liberdade dos seus concidadãos e que tão adorado (é o termo) fosse pelos contemporâneos e pelos sobreviventes. Em Roma explicou se o fato pela corrupção e pelo medo; aqui ainda é cedo para que a história se pronuncie sobre as suas causas, e tivemos um elemento novo: um sacerdócio sem fé, de uma religião sem Deus, fundada na filosofia do despotismo, que tem como ideal a tirania sistemática, e como instrumento a política dos Jacobinos. Esta doutrina, quase inconcebível pela sua extravagância, tem exercido tamanha influencia sobre o novo regime e está fazendo a República tão antipática ao nosso povo, que começo a recear da sua consolidação; não porque me pareça possível o sonho dos sebastianistas, mas porque me parece muito provável a anarquia, como precursora de um despotismo guerreiro e da dissolução deste pobre Brasil, que carece tanto reconciliar-se com Jesus Cristo, como de restaurar as suas finanças.

Um devedor insolvável e um povo sem fé não pôde ser livre nem honrado, e sem honra e liberdade não vale a pena viver.

O nosso finado Benjamin Constant, definido algures enfaticamente como uma espada virgem sobre um livro em branco, e tão bom, como homem particular, quanto perigoso, como professor, tem sido, com o seu positivismo, tão fatal à República quanto foi o francês ao Império, com o seu Poder Moderador.

12  Consulte-se a respeito dessa necessidade nacional, o 3º artigo da Revista da Faculdade do Recife, de 1894, e o 1º da do ano passado; aquele do ilustre Dr. João Vieira e este do não menos ilustre Dr. Clóvis Beviláqua, ambos dignos de serem lidos, sobre tudo o último, que se inscreve o Problema da codificação do Direito civil brasileiro.

13 Diário Oficial de 17 deste mês. Com essa jurisprudência o Presidente da República poderá, com ou sem o Congresso, decretar o estado de sítio por um ano, durante ele, conservar incomunicáveis os ministros do mesmo Tribunal e subtrai-los, sem recurso possível, quando recuperarem a liberdade. No mesmo Diário vem uma decisão muito contestável sobre o art. 60 letra D da Constituição.

14 Desta questão ocupou-se magistralmente Dr. B. Machado professor da Faculdade de S. Paulo, na lição inaugural do seu curso deste ano; sobretudo mostrando a sem razão do código comercial, distinto do civil. Peço-lhe, porém, permissão pura lembrar que, dois anos antes que o nosso Teixeira de Freitas propusesse o seu plano de código civil e comercial, o Projeto do Código do Canadá, promulgado em 1866, o havia realizado; ainda que em proporção mais modesta.

15 O meu recibo de renovação de assinatura no corrente semestre tem o n. 468 e foi passado em 15 de Junho.

16 Em algumas edições têm 99 títulos, porque os §§ 10 a 12 do tit. 6º do L. 3º formam o 7º tit. que inscreve-se “De Servili Cognatione”.

17 Além disso, contém algumas instituições do direito feudal, como a dos morgados e das Regalias. Para exemplo confira-se a Ord., L. 2, tit. 26 com o cap. 56 do L. 2 dos Feudos.

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